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A arte como trincheira: Paulo Roberto Farias e a escrita em estado de urgência

  • Foto do escritor: Pimenta Rosa
    Pimenta Rosa
  • 6 de mai.
  • 11 min de leitura

Literatura de guerrilha, vocação inegociável, corpo em cena e palavra em trânsito. É assim que se desenha a trajetória de Paulo Roberto Farias — escritor, ator e militante da arte como forma de resistência afetiva, política e existencial. Com três livros publicados por editoras independentes e um vínculo visceral com seus leitores, Paulo atravessa os silêncios impostos pela grande mídia com a mesma delicadeza com que embala os livros que envia pelos Correios, um a um, com dedicatória e afeto.

Graduado em Teatro e mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), integra os grupos Oigalê e ATO Cia. Cênica, tendo atuado em cerca de vinte espetáculos profissionais. Em 2012, foi reconhecido com o Prêmio Açorianos de Melhor Ator Coadjuvante pelo espetáculo O Feio, consolidando sua presença de destaque na cena teatral gaúcha.

Na literatura, Paulo estreia em 2013 com 'A tessitura da noite' (Multifoco), novela indicada ao Prêmio Livro do Ano da Associação Gaúcha de Escritores na categoria narrativa longa. Em 2021, lança 'Deixa eu te falar da noite' pela editora Caos e Letras, romance que amplia seu público e firma sua escrita como uma voz sensível e contundente do nosso tempo. Três anos depois, retorna à mesma editora com 'Um rio corre dentro do meu sonho', livro de crônicas que reafirma sua potência narrativa, marcada pela escuta do cotidiano, pela delicadeza da observação e pelo lirismo comprometido com a vida.

Na entrevista que segue, Paulo Roberto compartilha as dores e as delícias de viver da arte 'aos trancos e barrancos'. Fala sobre o tempo como aliado na construção de sua escrita, os afetos que impulsionam seu trabalho e a relação direta que mantém com quem o lê e o assiste nos stories diários, ou nas salas de teatro. Em tempos de desmonte das políticas culturais, ele reafirma a vocação como território de insistência, onde a arte resiste não apenas como linguagem, mas como modo de existência.


Confira a íntegra da entrevista.



Paulo Roberto, você se define como alguém que faz 'literatura de guerrilha', O que essa expressão representa para você e como ela molda a sua trajetória como escritor?

É um trabalho braçal, de formiguinha: eu mesmo revendo meus livros e faço minha própria divulgação. Minhas redes sociais são minha vitrine de livraria. Vou ao Correio toda semana postar os livros que vendi, sempre com dedicatórias. Do mesmo jeito é meu trabalho como ator, não estou em grandes produções, todos os mais de vinte espetáculos em que atuei sempre foram produções de grupos teatrais que trabalham muito para se manter. Então o trabalho artístico que eu faço é de guerrilha porque dependo dele para sobreviver, artística e financeiramente.


 

Você escreve desde os dez anos, mas seus livros foram lançados anos depois de escritos. Como é esse processo de maturação das obras e de espera por oportunidades de publicação?

O tempo da espera não é nem um pouco inativo. Confesso que às vezes o aguardo pela publicação dos meus livros me causa grande ansiedade, mas reconheço também a importância desse tempo expandido no processo de criação. Comecei a escrever ficção aos dez anos motivado por uma professora, guardo ainda comigo uma dezena de cadernos da adolescência, histórias absolutamente influenciadas pelas novelas a que assistia na televisão. Hoje olho pra trás e fico admirado com meu primeiro livro, A tessitura da noite (Ed. Multifoco, 2013) que comecei a escrever quando recém tinha saído da adolescência – mas sei que isso só foi possível porque antes passei anos exercitando a escrita naqueles cadernos juvenis. Publiquei A tessitura da noite aos trinta anos, mas o livro ficou guardado cerca de sete anos desde a finalização até a aprovação por uma editora. Depois mais sete anos de espera até a publicação do segundo, o romance Deixa eu te falar da noite (Ed. Caos&Letras, 2021) – a publicação desse livro é pra mim até hoje um reconforto quando penso na lentidão do processo até o livro chegar no leitor. Esse livro passou por uma mudança muito grande desde a primeira versão até a versão final – revendo a trajetória dele fico aliviado que não tenha sido publicado logo após a finalização da primeira versão. O terceiro e mais recente, Um rio corre dentro do meu sonho (Ed. Caos&Letras, 2024) é um livro de crônicas e de memórias que teve um processo de escrita mais complexo. A maior parte dele foi escrita quase sem que eu percebesse que estava escrevendo um livro, os textos surgiram antes da ideia de livro. Só quando eu percebi que tinha um bom volume de textos e que eles se relacionavam entre si é que eu sentei pra dar a eles uma forma de livro. Então tem textos ali que foram escritos ao longo de muitos anos, mas que só foram formatados em 2023 quando finalizei o projeto. E quase sem que eu percebesse esse livro virou um outro, que eu prometi, aos quinze anos, que escreveria sobre meus avós. Em uma das últimas crônicas, eu conto essa história e transcrevo a primeira página da primeira versão que escrevi em 1998. Então pra resumir: o tempo é meu inimigo na medida em que tenho pressa de alcançar os leitores, mas é também um dos meus maiores aliados.

 


Você menciona que vive da arte “aos trancos e barrancos”, mas se recusa a viver fora da sua vocação. Qual é o preço – e a recompensa – dessa escolha?

Eu vivo de teatro e de literatura, não sei fazer outra coisa que não seja atuar e escrever. E nem quero. Já faz alguns anos que tenho conseguido me manter assim, vou lidando com as contas e os perrengues como posso, às vezes também com intervalos um pouco mais folgados. Como ator, eu não produzo os espetáculos em que atuo, e isso acarreta que acabo dependendo de convites e oportunidades que vão surgindo, agora por exemplo estou criando meu primeiro monólogo e ao mesmo tempo estou no elenco de outros quatro espetáculos que estão em repertório. E se precisar seguro com alegria e disposição o malabarismo de fazer quantos outros espetáculos surgirem. Como escritor, sou publicado por duas editoras independentes, a Multifoco e a Caos&Letras, que são ótimas e muito competentes, sobretudo a Caos que tem um projeto gráfico irretocável, que criou capas impecáveis pros meus dois últimos livros – porém nenhuma delas têm distribuição em livrarias. Isso acaba limitando o alcance do meu trabalho, o livro só chega em quem me conhece ou conhece a editora. Transito entre duas sensações sobre meu trabalho artístico: às vezes sinto que pelo tempo em que estou no mercado eu deveria ser mais conhecido, queria ter mais oportunidades de divulgar meu trabalho na grande mídia, queria que meus livros fossem distribuídos em livrarias de todo o Brasil; por outro lado sinto também que já alcancei a possibilidade de ser publicado por editoras que acreditam e apostam no meu trabalho, que tenho leitores incríveis e extremamente afetuosos que compartilham comigo relatos emocionantes sobre a experiência de ler aquilo que escrevo.





Apesar da relevância dos temas que você aborda, como as enchentes no interior do estado, a grande mídia tem fechado as portas para o seu trabalho. Como você encara essa negligência com a literatura independente?

Eu acho incrível que nos últimos anos a literatura brasileira tenha vivido um dos seus melhores momentos, cada vez mais os livros escritos por nossos autores têm alcançado o grande público e alguns têm encabeçado as listas de mais vendidos. A escrita feita por mulheres e pela comunidade negra têm expandido cada vez mais seus espaços no mercado editorial e têm atingido uma qualidade inigualável – tudo isso é absolutamente maravilhoso. Mas a verdade é que nem todas as pessoas que escrevem boa literatura hoje no Brasil conseguem ser publicados por editoras que lhes deem visibilidade na grande mídia, sem contar que as grandes editoras são impenetráveis, a grande maioria delas sequer está aberta a conhecer novos autores ou mesmo a avaliar originais. As portas estão fechadas para a maioria de nós e só consegue entrar quem descobre modos de arrombá-las. Quem consegue ser publicado por editoras independentes, como é o meu caso, enfrenta também a dificuldade de conseguir espaço nos grandes meios de comunicação. Quando fiz o lançamento do meu livro novo aqui em Porto Alegre em dezembro de 2024, por exemplo, mandei o material de divulgação pra todos os grandes jornais da cidade, entrei em contato direto com os responsáveis pela cobertura cultural desses veículos, nenhum deles publicou uma nota sequer. Só consegui espaço na TVE-RS e na FM Cultura, emissoras de televisão e rádio públicas. E olha que um dos temas centrais do livro é justamente as enchentes que assolaram e assolam desde sempre as famílias do interior do estado, uma pauta que está em toda parte por conta do desastre ambiental ocorrido em maio de 2024. Não há espaço para os autores independentes na grande mídia, não somos notados, não aparecemos nas listas de indicações às premiações porque a máquina do capitalismo nos esmaga e nos apaga – como podemos ser indicados a prêmios se não nos notam? Como seremos publicados por grandes editoras se não merecemos visibilidade? É um ciclo vicioso difícil de escapar.

 


Em contrapartida, as leituras dos seus diários nos stories parecem ter criado uma ponte íntima com esses leitores muito fiéis, que te acompanham, te leem e te emocionam. Como é a relação com esse público que te acolhe, mesmo à distância? E que tipo de retorno mais te marcou dessas experiências?

Esse é um projeto que criei em 2021, durante a pandemia de covid-19, e que venho mantendo com uma certa regularidade no meu perfil do Instagram. Já fiz nove edições. Durante uma semana leio trechos dos meus diários pessoais nos meus stories para um público que me apoia financeiramente. Tenho um carinho muito especial por esse projeto porque ele é absolutamente singular, não conheço nenhum autor ou autora que desenvolva algo sequer semelhante, e de certa forma também me parece que esse projeto se infiltra num lugar que está entre meu trabalho como ator e meu trabalho como escritor. É a minha voz lá nos vídeos, é a presença do meu corpo que faz as leituras – ainda que intermediado pelo celular –, é o meu texto e a minha letra que são mostrados, é a minha vida mais íntima e particular ali exposta. Tem um caráter muito imediato também que me interessa experimentar naquele espaço, não tem a espera pela publicação dos textos em livros, os textos são crus, não foram escritos tendo uma publicação em vista, a escrita chega no leitor/ouvinte sem a mediação do livro, de certa forma é direta como no teatro. E, no entanto, foram escritos por mim, sem nenhuma ficção, é a minha vida tornada escrita. Alguns desses textos inclusive foram reescritos e se transformaram em algumas das crônicas de Um rio corre dentro do meu sonho. Então tem essa possibilidade também do leitor/ouvinte acompanhar os meus processos de escrita desde dentro, enquanto estão sendo criados, e sinto mesmo que eles participam dessa criação na medida em que a escuta deles é ativa e participativa. Eu recebo retornos lindos, emocionados e emocionantes a cada edição. Eu acredito que os textos só se ampliam e se desenvolvem quando entram nesse processo de contaminação. Em Um rio eu digo também: “Amo o que nasce dessa experiência de partilha, aprendo que as coisas não são estanques, que aquilo que penso e crio está em processo de maturação na troca com os outros.”

 




Em Um rio corre dentro do meu sonho, você escreve: “Eu quero continuar sendo amado depois que eu morrer e não posso morrer agora porque ainda não sou amado o suficiente.” Como esse desejo de ser lido e lembrado movimenta a sua escrita e o seu fazer artístico?

 

É o motor e o combustível de todo meu trabalho artístico. Eu necessito do outro que me assiste e que me lê. Eu sou um exibido que se mostra pra ser amado por aquilo que mostra. Em Um rio eu digo também: “Não tenho tempo de morrer agora quando ainda preciso entrar em cena muitas outras vezes, não posso morrer ainda tendo tantos livros para escrever, ainda preciso abastecer as lembranças de quem me ama com muito teatro e muita literatura.” Então é isso: a paixão pela minha vocação artística está intrinsecamente entrelaçada ao amor que recebo de quem me assiste e de quem me lê. O cruzamento desses dois sentimentos sustenta e dá sentido à minha vida.

 


Você compartilha o cuidado com que envia cada livro pelos Correios, com dedicatória e carinho. O que esse gesto diz sobre o tipo de vínculo que você busca construir com quem lê seus textos?

Aprendi a encontrar prazer na labuta diária pela manutenção da minha carreira artística. O fato de eu mesmo gerenciar a venda dos meus livros me causa uma imensa satisfação: eu adoro fazer minha divulgação, amo repostar os relatos dos leitores, amo fazer as dedicatórias, embrulhar os livros, preencher os envelopes, caminhar até o Correio mais próximo da minha casa. Amo esse caráter artesanal de pegar o livro com minhas próprias mãos, escrever com minha própria caligrafia. Fico depois imaginando o livro chegando na casa dos leitores, essa independência me aproxima ainda mais deles, me coloca em contato direto com quem me lê, é uma troca quente, calorosa, do meu corpo para o corpo do outro.

 


Como ator e escritor, como você vê o cruzamento entre teatro e literatura na sua vida? Eles se alimentam mutuamente?

São faces distintas e complementares da mesma paixão: a minha vontade insaciável de contar histórias e emocionar os outros. A emoção de emocionar os outros é o meu vício como artista. Eu amo que a natureza do teatro necessite da repetição: eu quero sempre voltar a me emocionar com a emoção de novas pessoas na plateia. E sigo escrevendo também pelo mesmo motivo: me emociono até às lágrimas relendo o que escrevi porque sei que através da escrita minha vida e minhas experiências serão validadas e acolhidas por quem me lê, mesmo que sob o véu da ficção. Acho também que o fato de ser escritor me torna um ator melhor, e vice-versa: sei quando a frase cabe na boca do leitor porque antes ela passou pela boca do ator que escreve.

 


Há espaço na cena cultural brasileira para quem, como você, que resiste com consistência e paixão? O que seria necessário para fortalecer essas vozes independentes?

Somos muitos fazendo esse trabalho de guerrilha, abrimos nossos próprios espaços, resistimos e resistiremos apesar de tudo. Nem que seja nas catacumbas, como diz a Fernanda Montenegro. O acesso à arte é um direito nosso, precisamos entender na prática que a cultura não é algo acessório ou supérfluo, pelo contrário: é um bem coletivo, ganhamos todos quando o trabalho dos artistas independentes consegue alcançar visibilidade. Como sociedade precisamos fortalecer e ampliar as políticas públicas de incentivo aos artistas e aos projetos independentes. Como leitores também podemos fazer esse trabalho de valorização das pequenas editoras e dos autores independente, e percebo que isso tem acontecido cada vez mais: os leitores têm comprado livros direto com os autores, têm compartilhado suas experiências de leitura, têm recomendado nossos livros para outros leitores, tudo isso é maravilhoso e só estimula e fomenta o nosso trabalho.

 




Por fim: quem são Ariosto, Marla e os seus avós, e o que eles revelam sobre você e sobre a sua literatura?

 São personagens com quem tenho uma longa história de amor, sobre quem dediquei uma parte importante da minha vida, eles seguem me acompanhando a cada vez que meus livros ganham leitores. E sinto que eles continuam sendo recriados a cada vez que são lidos, a criação deles só se completa quando alcança o leitor do outro lado da página. Há pouco tempo reli o meu romance Deixa eu te falar da noite para uma reimpressão, nunca mais tinha relido o livro desde o lançamento em 2021, e fiquei tão impressionado com a Marla, com a autonomia dela, gargalhei e me emocionei como se fosse a voz dela mesma quem narrasse e não eu por trás dela. Vários leitores já me disseram que depois da leitura ficaram procurando identificar o prédio onde ela mora numa avenida aqui de Porto Alegre – isso é tão incrível, ela existe, e isso só acontece porque o leitor estabeleceu com o livro uma espécie de pacto ficcional muito forte. Uma leitora muito querida também disse recentemente que meus avós viraram um pouco avós dela depois da leitura de Um rio corre dentro do meu sonho, e isso me comove demais: saber que através da escrita transformei meus avós em algo que transcende a existência puramente física, o meu amor os transformou em pura literatura. Pra mim só faz sentido escrever se sei que serei lido. É assim que desejo ardentemente a cada livro colocado no mundo: que meus personagens sejam tanto meus quanto de quem me lê.


 
 
 

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