A fome como ferramenta de controle na educação pública fluminense
- Pimenta Rosa
- 10 de set. de 2024
- 5 min de leitura
Eduardo Papa analisa como a precarização da merenda escolar reflete uma política deliberada de desmonte da educação pública no Rio de Janeiro, destacando as diferenças entre as gestões passadas e atuais.

O jornal Pimenta Rosa publica hoje (10) o artigo 'A Fome como Política de Administração na Educação Fluminense' de autoria de Eduardo Papa, professor de História, jornalista e artista plástico. O texto explora como a fome, mais do que uma consequência da pobreza, tem sido utilizada como um instrumento político. No campo da educação fluminense, essa realidade se manifesta de forma alarmante. Durante as gestões de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, nos anos 1980, a merenda escolar representava um dos pilares de sucesso dos CIEPs, nutrindo tanto os corpos quanto as esperanças dos jovens. No entanto, hoje, a precarização desse recurso essencial reflete uma estratégia de desmonte da educação pública, visando enfraquecer, dividir e humilhar trabalhadores e estudantes.
A fome como política de administração na educação fluminense

Por Eduardo Papa*
Qualquer pessoa que viveu no Estado do Rio de Janeiro no final do século passado, que tenha um mínimo de conhecimento da causa e, para muitos, a honestidade de admitir, vai certamente confirmar que uma mudança importante e positiva no Estado operou-se na escola pública. Brizola e Darcy construíram centenas e encheram milhares de escolas com jovens, trazendo com eles a esperança. O programa educacional dos CIEPs foi abraçado pela população, exceto setores minoritários, ultrareacionarios eivados de aporofobia, que instilavam ódio (parecido com o que hoje vemos com indesejável frequência), contra o programa, mesmo sendo agressivos, insultuosos e abusarem da mentira (como fazem com mais sucesso seus numerosos sucessores), não encontraram eco na sociedade.
Uma das pedras angulares para o sucesso do programa foi a merenda escolar, fato descrito de maneira desairosa por alguns, para diminuir e humilhar nosso povo pobre, era uma verdade insofismável e bela, muito e muito bela! Lecionei na rede estadual nessa época, dava gosto de ver os refeitórios lotados, a comida de boa qualidade e acompanhando os hábitos alimentares das famílias locais. As crianças podiam repetir, e repetiam mesmo, todo mundo comia, professores, funcionários escolares, garis, policiais, era um fator de atração e prestígio para a instituição escolar e ferramenta poderosa de estímulo para os jovens. E isso não caiu do céu, foi resultado de uma mudança de política pública e novos métodos de governança.
O Chaguismo fazia todas as compras de alimentação do Estado (escolas, hospitais, presídios, palácios etc.) através de uma única empresa pública, a COCEA, que era um centro de produção de escândalos de corrupção na época. O novo governo desmembrou as compras por secretarias e criou um sistema de compras descentralizados pela ponta, de licitação por adesão, que revolucionou o sistema de funcionamento da burocracia, condicionando a atuação de todo o processo de compra, dede a aquisição até a liquidação nas Inspetorias de finanças a decisões tomadas na base da pirâmide, no caso das escolas pelas diretoras. O que por si só foi algo de tanta relevância que mereceria um artigo só para explorar o seu impacto e a genialidade da engenharia social que engendrou, para o caso que tratamos basta dizer que funcionou.
A fartura chegou, sem aumentar os gastos orçamentários para alimentação.
Hoje, em consoante com um dos pilares de sustentação do neoliberalismo, o de 'manter pobre a educação das classes subalternas' (Chomsky, Noam Mídia: propaganda e manipulação Ed. WMF 2013 São Paulo) e seguindo um modelo desenvolvido pelo governador Ratinho Jr, no Paraná, há em gestação nos principais estados do Brasil uma política educacional voltada para a destruição de nossa escola pública, com o objetivo de privatizar o setor, detentor dos suculentos recursos do FUNDEB. A política mudou, mas merenda continua a ser um elemento central, afinal a distribuição do alimento desde sempre é um elemento crucial para a formação do poder, a prosperidade ou o declínio de comunidades e países e a fome uma eficaz arma de guerra, que nos digam os palestinos em Gaza.
No Rio, o governador Cláudio Castro tem sido zeloso em manter a merenda escolar escassa e de baixa qualidade e recentemente, para demonstrar a austeridade de sua administração, proibiu os funcionários de comerem em suas unidades, sob pena de sansão pecuniária para os diretores responsáveis. Qual seria o sentido do governo adotar uma medida tão impopular? Será que algum tecnocrata apresentou um estudo demonstrando uma grande economia com a medida? Duvido que haja tal estudo feito com seriedade e, ainda que houvesse, será que os valores justificariam o desgaste político? Claro que não! A medida foi tomada de caso pensado, por quem sabe exatamente medir as consequências de seus atos e a motivação certamente vai bem longe de considerações técnicas.
Para refletir sobre o assunto vamos especular sobre seus resultados imediatos. Logo de cara é um avanço no processo de eliminação da autonomia local, a merenda talvez seja o último elemento importante da administração da escola controlado pela direção. Todo o processo de controle pedagógico é centralizado por um sistema informatizado, dos professores o máximo que a diretora administra é o controle da frequência (por enquanto). Além de avançar na centralização das decisões para o nível central, ao colocar uma 'espada de dâmocles' sobre a cabeça dos gestores, aprofunda a política do dividir para dominar, com quem a diretora vai se alinhar? Ao governo? Aos funcionários? A todos os funcionários?
Muito bem se no plano administrativo segue o caminho da centralização das decisões no poder político do momento, e para os funcionários? Bem para os funcionários o resultado óbvio é a fome e o objetivo é desestimular o trabalho pela humilhação, aumentando cada vez mais os já elevados índices de burn out. Além de um mal estar terrível vai criar sérios problemas de toda natureza: o que vai fazer um professor de escola rural com quilômetros de estrada de barro até onde ele pode comprar comida? Ou um agente educador lotado em uma escola de um bairro valorizado em que não encontre refeições que possa pagar? O pessoal vai ter que ser bom de marmita, e onde vão esquentar várias marmitas quando as merendeiras estão servindo os alunos? As perguntas irão se multiplicando na mesma medida dos dramas sociais engendrados para inúmeros trabalhadores de baixíssima remuneração.
Faltou explicar como o governo está disposto a absorver o ônus político da medida. Muito simples, se fosse para restringir o rancho nos quartéis da polícia, o assunto nem seria cogitado, pois os afetados seriam pessoas que na mentalidade miliciana são o 'nós', já os trabalhadores da educação são o 'eles', nessa mentalidade de guerra do nós contra eles que trouxe a cizânia e a brutalidade para a nossa sociedade. Castro et caterva consideram a educação como inimiga, não pretendem nada ali senão destruir, não vão investir em nada em que não tenham vantagens pecuniárias, como nos casos dos empregos e projetos secretos da UERJ e CEPERJ e vão continuar mantendo os menores salários do Brasil, empurrando o Rio, que já foi modelo para a educação do Brasil, para a 'lanterninha do ENEM'.
*Eduardo Papa é professor de História, jornalista e artista plástico
Comments