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Brasil: o país da bola

  • Eduardo Papa
  • 11 de mai.
  • 9 min de leitura

Por Eduardo Papa*


Ilustração de Felipe Mendes - @ocoletordehistorias


Escolhi o futebol como tema para a última parada de nossa viagem pela história recente do país. Para mim é mais um desafio, pois é um assunto que não domino o suficiente para discutir em suas minúcias, mas a paixão nacional pelo esporte bretão é tão grande e sua exposição na mídia tão dominante, que não há sequer um brasileiro que não possa se aventurar a discorrer sobre o fascinante mundo da bola.

 

Lecionei para o ensino médio por 42 anos, dei aulas para alunos de famílias muito pobres e muito ricas. É natural a curiosidade dos alunos por tudo na vida de seus mestres e, se há algum professor lendo esse artigo vai concordar comigo, uma pergunta que nunca falta logo no primeiro dia de aula é: qual é o seu time, professor? Se o profissional também for um torcedor apaixonado, a construção da empatia (positiva ou negativa) pode passar por aí, eu aproveitava a conversa por alguns minutos para ajudar na sondagem e seguia em frente, exceto nas turmas do terceiro ano do ensino médio, cuja programação inclui a formação da sociedade industrial (sou professor de história). Em um momento da carreira me deu uma inspiração e fiz, durante essa conversa inicial, uma pergunta crucial, que permitiu a ligação imediata com matéria a estudar, e que desde logo adotei como técnica pedagógica:

 

Diga lá quem sabe por que inventaram o futebol? O debate foi riquíssimo, galvanizou a atenção de todos, e a resposta de grande eficácia para a compreensão do tema (Revolução Industrial na Inglaterra): foi porque antes da era industrial pobre trabalhava de segunda a segunda, ia à missa aos domingos e depois voltava à faina, refresco só nas festas do calendário religioso. As fábricas, em torno das quais ocorreu acelerada urbanização e concentração demográfica, param de produzir um dia na semana para manutenção, e surge a folga aos domingos, quando a massa trabalhadora está livre nas ruas, sem a supervisão da capatazia. Nesse momento a classe dominante começa a se preocupar com o que fazem os operários em seu tempo livre e a propor atividades alternativas às práticas consideradas perigosas e reprováveis, tais como grupos de estudo e reuniões sindicais, que surgiam em toda parte. Assim surgiu o futebol, mais ou menos ao mesmo tempo em que o Barão de Coubertin resgatava os jogos da antiguidade grega, criando as olimpíadas modernas. Os operários precisavam ser alfabetizados, e logo surgiram os primeiros jornais de grande circulação, e depois o rádio, estimulando o interesse e a paixão pelos jogos, que se transformaram em uma indústria, ou parte da vasta indústria do entretenimento, que oferece inúmeras oportunidades e alternativas para distração das pessoas, e só faz crescer até hoje.

 

O futebol chegou às Américas através do Rio da Prata, e de lá desembarcou no Brasil como um esporte de elite. Aqui no Rio, os primeiros clubes de football disputavam com as regatas o interesse da juventude de classe média, que não precisava trabalhar para viver. Botafogo, Flamengo e Fluminense surgiram em bairros nobres da cidade e, em sua origem, discriminavam o Vasco da Gama, fundado por comerciantes portugueses, de composição mais popular. Assim como na Europa, a imprensa, principalmente o rádio, contribuiu para a popularização do esporte, criando rivalidades entre torcidas para animar sua audiência, e o futebol caiu no gosto do povo. Nos anos dourados da nossa história, serviu como um elemento de elevação do orgulho nacional, após as primeiras conquistas de copas mundiais (1958 e 1962), sepultando aquilo que Nelson Rodrigues definia como complexo de vira-latas. Nos anos de chumbo, o futebol foi largamente utilizado pela ditadura como instrumento de propaganda, ganhando um impulso enorme com as transmissões pela TV. O futebol virou sem dúvida o esporte nacional, uma paixão extrema para muitos brasileiros, em torno do qual gira uma estrutura econômica, que move bilhões no mundo inteiro e alcançou um elevado nível de sofisticação e complexidade, inimaginável no tempo em que Dandão jogava no Andaraí.

 

Agora nem tem mais Dandão, nem Didi, Dodô, Pelé, Zico. Jogador agora tem nome de imperador romano ou cantor de bolero, é Otávio Augusto, Rodolfo Caio, etc. E não foram só os nomes a crescer, o mercado de trabalho aumentou de maneira exponencial e, muito embora a grande maioria dos atletas tenha rendimento modesto, os salários dos grandes astros tornaram-se astronômicos. Compare o fim da carreira do Mané garrincha, gênio da raça brasileira, que encheu de orgulho a nação e acabou sem vintém, dependendo da Elza Soares para ter um fim de vida digno, com o fim de carreira de Neymar Júnior, um ex-jogador ainda em atividade, que não agregou nada ao Brasil, a não ser má fama, e ficou milionário.

 

Desde que surgiu, a profissão de jogador de futebol mudou muito. A princípio chegavam aos clubes já homens feitos, com as mais diversas experiências de vida, desde doutores como Tostão e Afonsinho até pessoas extremamente simplórias jogavam o mesmo jogo. Hoje não, com raras exceções, os atletas profissionais são formados desde a infância, e cada vez mais cedo, nos Centros de Treinamento dos clubes, onde são enquadrados na cultura dos “boleiros”, em que jogadores, treinadores e dirigentes obedecem a um script previamente ensaiado. A prova maior são as entrevistas concedidas ao vivo. Não há mais um Dario Peito de Aço para dizer que era a solucionática para a problemática do Flamengo, que com seu erro crasso dizia muito mais do que o enfadonho e monocórdio discurso padrão atual: “Primeiramente agradeço a Deus...Seguindo a orientação do professor...Para honrar essa camisa”e um monte de clichês considerados adequados para o consumo do público pela mídia especializada.

 

Pelos resultados que todos podem assistir nos estádios brasileiros, a formação desses jovens nesses CTs não é lá grande coisa, o espírito esportivo ficou lá no tempo do Barão de Coubertin. Hoje é vale tudo por dinheiro. Atletas são formados na lógica da vitória a qualquer custo, treinados para simular situações de modo a ludibriar os árbitros, de cujas decisões sempre reclamam acintosamente. Um conhecido treinador paulista foi flagrado no intervalo de uma partida, orientando seus jogadores a cuspirem no rosto dos adversários à guisa de provocação. A máxima do neoliberalismo do lucro acima de tudo impera no meio da bola, a formação dos atletas faz parte do negócio, e o dano colateral é ver alguns dos “crias” passando da seção de esportes para as páginas policiais dos jornais. Não acompanho de perto, mas eu não tenho visto líderes em campo com a estatura de um Sócrates ou um Juninho Pernambucano, por exemplo, quem costuma tomar a frente são uns sujeitos mal-educados, de boca suja e destemperados, que não raro vão às vias de fato. É lamentável, mas não são os jogadores os responsáveis pela engrenagem, mesmo os de maior sucesso, são meros peões no complicado tabuleiro de disputa dos seus próprios direitos federativos, um mercado volátil, que movimenta grandes somas e que virou um paraíso para a lavagem de dinheiro.

 

O esporte em si mudou muito pouco, as regras são basicamente as mesmas, a aplicação da tecnologia (VAR) em algo tão importante era inevitável, o material esportivo e os uniformes melhoraram muito, mas, fora a polêmica da grama artificial (que talvez não agrade ao paladar de alguns), dentro das quatro linhas está tudo mais ou menos como antes, contudo em volta parece outro mundo. Não estou falando da estrutura de apoio dos clubes, departamentos médicos evoluíram como a medicina em geral, setores jurídicos e administrativos ganharam a sofisticação própria dos negócios de grande porte. A grande transformação não ocorreu no palco, mas sim na platéia, o estádio que eu frequentei quando menino não existe mais, o Maracanã está lá no mesmo lugar, mas agora é outra coisa.

 

Antes do estádio virar arena, o Maracanã recebia mais de cem mil pagantes nos grandes jogos, eu mesmo fui a vários. O futebol era um espetáculo popular e barato, na geral militar fardado pagava um cruzeiro, uma ninharia. Recomendo dar uma olhada no Canal 100 no youtube (um Cinejornal especializado da década de sessenta) ou no filme Garrincha a Alegria do Povo, que em diversas cenas mostram torcedores, para constatar que quem ia ao jogo era o povão. Eu lembro bem, multidões espremidas nas arquibancadas de cimento, explodindo em uma catarse de alegria na hora do gol, na maioria gente simples lavando a alma e encontrando como sublimar o sofrimento diário. E com o povo pobre não era esse horror de violência que vemos hoje, aqui ou acolá rolava um entrevero, resultado de alguns torcedores com ânimos exaltados no meio da multidão, mas nada parecido com o que vemos hoje. Esse negócio de bandidos armados marcando verdadeiras batalhas campais, que não raro resultam em morte, era inimaginável. E olha que a cerveja era vendida em garrafa nos bares, o público não passava por revistas, circulavam ambulantes com todo tipo de material (eu adorava o amendoim torrado que vinha na lata com fogo aceso), não tinha batalhão especializado, era segurança zero. A princípio, os torcedores ficavam misturados na arquibancada, a partir do surgimento de uma charanga com as cores do Flamengo, inocentemente, os torcedores começavam a se aglutinar em torno de torcidas organizadas, que mantinham uma batucada, confeccionavam faixas e bandeiras, organizavam viagens para acompanhar o time, etc. E deu no que deu!

 

Os estádios agora são ocupados por uma gente brancarana, capaz de pagar ingressos caros e consumir bebidas e lanches fornecidos somente por empresas credenciadas, vestidos com suas camisas oficiais. Os pobres, que sustentaram o crescimento do esporte garantindo gordas bilheterias, não são mais desejados dentro do estádio, mas nem por isso deixam de ser tosquiados pelo mercado da bola. As transmissões pela TV evoluíram muito, mas os jogos de maior interesse nem sempre passam na TV aberta, o torcedor que não pode ir ao estádio, nem pagar uma assinatura de TV fechada, vai ver seu time de coração como? Moleza, as operadoras de TV oferecem planos especiais para bares, que para atrair clientes aderem em massa, nos dias de jogos os estabelecimentos ficam lotados, para alegria dos proprietários e de um dos maiores patrocinadores do esporte – a indústria de bebidas. Bom gancho para deixar um pouco de lado a paixão do torcedor e esmiuçar um pouco as entranhas do negócio.

 

E que negócio! Vai longe o tempo em que os atacadistas da Rua do Acre fizeram uma vaquinha para construir o Estádio do Vasco da Gama, ou que banqueiro de bicho Castor de Andrade bancava o time do Bangu, agora é coisa de gente grande no mundo inteiro! Imagina os ingleses, sempre cheios de pose, quando um Sheik lá das arábias comprou um de seus times mais populares? O futebol virou um negócio bilionário, que aqui no Brasil subiu muito de patamar quando o mordomo de vampiro (o que tomou o lugar da Dilma Roussef) liberou as bets. O capital meteu o pé na porta, deixando no passado qualquer resquício de amadorismo no esporte. Vejam o exemplo do Botafogo, estava falido, caindo pelas tabelas, foi comprado por um empresário americano e em pouco tempo voltou ao topo, disputando e vencendo os principais campeonatos. A tendência é inexorável, para horror dos mais ingênuos saudosistas, o poder do dinheiro será cada vez mais decisivo no esporte, como em tudo mais. E duas perguntas precisam ser respondidas para entender direitinho como isso está se desenvolvendo, quem controla e quem banca o negócio.

 

Grande parte dos “cartolas”, dirigentes dos clubes e federações, figura entre a escória da política nacional, muitos buscam mandatos parlamentares, apoiados pelos torcedores de seus clubes, para obter cobertura institucional para seus negócios ocultos. Quem não se lembra do helicóptero de um parlamentar dirigente de clube apreendido com meia tonelada de cocaína? Tem cartola brasileiro cumprindo pena no exterior por lavagem de dinheiro, tem os que flertam com o golpismo, é uma turma da pesada que comanda o espetáculo, mas quem os patrocina? Já falamos da indústria de bebidas, que responde por uma fatia importante da receita dos clubes e federações, muito embora o álcool seja a droga que mais mata e adoece no mundo, a sociedade não vê nenhuma estranheza que sua indústria patrocine o esporte (pelo menos a indústria do cigarro foi afastada). A falta de critério é tanta, que até a “casa das primas” faz propaganda nos jogos. Recentemente, uma empresa que agencia encontros com acompanhantes (leia-se exploração do lenocínio) ostentava sua placa de publicidade nos jogos do brasileirão. Entretanto o mais absurdo foi a apropriação do esporte nacional dos brasileiros pelos cassinos virtuais, que se transformaram em um grave caso de saúde pública e ameaça a economia das famílias. Temer liberou as bets, no apagar das luzes de seu mandato, e Bolsonaro nada fez para sua regulamentação, o campo ficou livre para a máfia dos cassinos, que tomou conta do futebol, aproveitando a paixão nacional para escravizar pelo vício do jogo um sem-número de brasileiros.

 

O mais escandaloso é que não se ouve um pio na mídia corporativa, me causa engulhos quando vejo esse Galvão Bueno, liderando todo o jornalismo especializado, na apologia a jogatina. Lembro do João Saldanha, que quando convidado para ancorar a campanha de lançamento da loteria esportiva, recusou uma oferta milionária da CEF, dizendo que não ia fazer propaganda para um jogo que a banca tem mais de um milhão de chances de ganhar que o apostador. Passou o tempo de Garrinchas e Saldanhas, e o que mais me entristece é quando vejo o entusiasmo de meu netinho de onze anos com o futebol, entretido com álbuns de figurinhas dos jogadores, acompanhando a campanha de seu clube do coração e da seleção brasileira, sem saber que o esporte que ama é comandado por politiqueiros corruptos e patrocinado por bookmakers, vendedores de drogas e cafetões.


*Eduardo Papa - Colunista, professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)

 

 
 
 

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