DNA como árbitro? Nova regra da World Athletics aprofunda debate sobre inclusão trans no esporte feminino e desafia princípios da bioética
- Ronaldo Piber
- 17 de abr.
- 4 min de leitura

*Por Ronaldo Piber
A World Athletics, órgão regulador do atletismo mundial, acendeu novamente a chama do debate sobre a participação de atletas transgênero no esporte feminino ao anunciar uma nova diretriz que exigirá testes de DNA para verificar a elegibilidade. A medida, defendida pelo chefe da organização como essencial para manter a "integridade do esporte feminino", chega em um momento de crescente discussão e polarização sobre como equilibrar inclusão e competição justa, trazendo à tona complexas questões bioéticas.
A notícia, divulgada pela Al Jazeera em 26 de março de 2025, detalha que a World Athletics pretende implementar testes genéticos para determinar o sexo biológico das atletas que competem em categorias femininas. A justificativa central reside na alegação de que atletas que passaram pela puberdade masculina manteriam vantagens físicas significativas, comprometendo a equidade da competição para mulheres cisgênero.
Essa decisão, no entanto, levanta uma série de questionamentos éticos, práticos e científicos que inevitavelmente impactarão a comunidade LGBTQIA+, em especial as mulheres trans atletas, e desafia diretamente princípios fundamentais da bioética.
O que está por trás da decisão? E onde entra a bioética?
A World Athletics argumenta que a medida é uma resposta direta às preocupações levantadas por atletas e federações sobre a justiça nas competições femininas. O foco principal reside nos níveis de testosterona, hormônio que naturalmente se eleva durante a puberdade masculina e está associado ao desenvolvimento de maior massa muscular, força e capacidade pulmonar. As novas regras provavelmente se basearão em limites de testosterona já existentes, mas a introdução de testes de DNA como método de verificação adicional adiciona uma camada complexa à questão, com implicações bioéticas significativas.
Do ponto de vista da bioética, a decisão levanta questionamentos sobre o princípio da não maleficência, que exige evitar causar dano. A obrigatoriedade de testes de DNA pode ser percebida como invasiva e potencialmente discriminatória, gerando ansiedade e estigma nas atletas trans. Além disso, o foco exclusivo em fatores biológicos pode ignorar a complexidade da identidade de gênero e a experiência individual de cada atleta, violando o princípio da autonomia, que preconiza o respeito às decisões e valores do indivíduo.
A justificativa da "integridade do esporte feminino" também esbarra no princípio da justiça. A bioética nos convida a refletir sobre o que é justo e equitativo para todos os envolvidos. Excluir um grupo de atletas com base em uma interpretação biológica restrita pode ser considerado uma forma de injustiça, especialmente se outras soluções menos invasivas e mais inclusivas não forem exploradas adequadamente.
Implicações para atletas trans: um olhar bioético
A exigência de testes de DNA para participação no esporte feminino é vista com apreensão por ativistas e organizações de direitos LGBTQIA+. A medida pode ser interpretada como mais um obstáculo para a inclusão de mulheres trans, reforçando a ideia de que sua identidade de gênero é passível de questionamento e escrutínio através de uma análise biológica. Bioeticamente, isso levanta preocupações sobre a dignidade e o respeito à identidade de gênero.
Além disso, a eficácia e a ética dos testes de DNA para determinar a vantagem atlética são controversas. A ciência ainda debate a complexa interação entre biologia, hormônios e desempenho esportivo, e reduzir a elegibilidade a um único fator genético pode ser uma simplificação excessiva de uma realidade multifacetada. Do ponto de vista bioético, a utilização de um critério tão redutivo para determinar a participação no esporte carece de uma base científica robusta e pode levar a decisões injustas e prejudiciais.
O debate em ebulição: a perspectiva bioética
A decisão da World Athletics surge em um contexto global de acirrado debate sobre a inclusão de atletas trans no esporte. Enquanto alguns defendem a necessidade de categorias separadas para garantir a competitividade para mulheres cisgênero, outros argumentam que tais medidas são discriminatórias e excludentes. A bioética nos convida a ponderar os diferentes valores e princípios em jogo, buscando um equilíbrio que promova tanto a justiça competitiva quanto a inclusão e o respeito à diversidade.
A comunidade LGBTQIA+ tem se posicionado majoritariamente em defesa da inclusão, ressaltando a importância do reconhecimento da identidade de gênero e do direito à participação esportiva para todas as pessoas. A imposição de testes de DNA pode ser vista como uma forma de patologizar a identidade trans e criar barreiras desnecessárias para atletas que já enfrentam inúmeros desafios. Sob a ótica bioética, essa patologização e a criação de barreiras levantam sérias questões sobre o bem-estar e a autonomia dessas atletas.
Para onde vamos? Um futuro com mais bioética e inclusão
A nova regra da World Athletics certamente intensificará o diálogo e a busca por soluções que conciliem a integridade da competição com a inclusão de atletas transgênero. É fundamental que as discussões futuras sejam informadas por princípios bioéticos sólidos, garantindo o respeito à autonomia, a não maleficência, a justiça e a dignidade de todas as atletas.
Acreditamos que o esporte deve ser um espaço de acolhimento e celebração da diversidade. A busca por "integridade" não pode se dar à custa da exclusão e da discriminação. A comunidade LGBTQIA+ seguirá atenta aos desdobramentos dessa decisão e lutará por um futuro onde todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero, tenham a oportunidade de participar e competir no esporte em igualdade de condições e com respeito à sua dignidade, sempre guiados por uma reflexão bioética que considere a complexidade da experiência humana.
*Ronaldo Piber é advogado e colunista do Jornal Pimenta Rosa
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