Escutar é um ato revolucionário que transforma vivências em potência coletiva
- Pimenta Rosa
- 20 de jun.
- 4 min de leitura
Criadores do "Histórias de ter.a.pia", Alexandre Simone e Lucas Galdino falam sobre escuta, diversidade e de acolher a dor do outro, valorizando vozes silenciadas

Em tempos marcados pela velocidade, pelo excesso de informação e pela escassez de escuta, nasce um projeto que escolhe o silêncio atento como ponto de partida. Criado com a intenção de oferecer um espaço seguro para histórias reais, o Histórias de ter.a.pia já publicou mais de 500 relatos — muitos deles de pessoas LGBTQIA+, negras e periféricas — que encontram ali um lugar de reconhecimento, acolhimento e humanidade. À frente dessa jornada de afetos e narrativas estão Alexandre Simone e Lucas Galdino, criadores da página e responsáveis por transformar o que começou como registros entre amigos em um dos espaços mais respeitados de escuta ativa nas redes sociais. Em entrevista ao Jornal Pimenta Rosa, Alexandre e Lucas compartilham como a diversidade floresceu de forma orgânica, fala sobre a responsabilidade de cuidar de histórias que ainda estão sendo cicatrizadas, e revelam o porquê contar — e ouvir — podem ser um ato político, terapêutico e profundamente transformador.
Como nasceu a ideia da página "Histórias de ter.a.pia"? O que motivou vocês a criar esse espaço de escuta e acolhimento?
A ideia do Histórias de ter.a.pia nasceu da nossa vontade de ouvir o outro de verdade. Em um mundo onde todo mundo fala, mas quase ninguém escuta, a gente sentiu falta de um espaço que acolhesse histórias reais, com toda a complexidade, dor, afeto e contradição que elas carregam. Começou de forma simples: gravando amigos, depois pessoas desconhecidas, e hoje virou um espaço de confiança. A escuta é o nosso ponto de partida, mas também é o nosso compromisso com quem topa se abrir.
Como funciona o processo de seleção das histórias? A maioria dos relatos publicados são de pessoas LGBTQIA+, negras e/ou periféricas. Isso foi uma escolha editorial ou algo que surgiu organicamente?
A gente não trabalha com uma pauta fechada. O que guia a escolha das histórias é sempre uma pergunta: essa história tem algo a provocar, emocionar ou ensinar? Todas chegam pelo formulário no nosso site historiasdeterapia.com/conte-sua-historia e, a partir dali, avaliamos com base em critérios editoriais que ajudam a entender o potencial narrativo daquele relato. A gente olha se tem começo, meio e fim, se envolve dor, superação, temas sociais…
O recorte de diversidade que aparece nos vídeos nunca foi imposto. Ele acontece porque quem sempre teve menos espaço encontra no ter.a.pia um lugar seguro pra falar. E a gente faz questão de manter esse espaço assim: sem corte, sem filtro, sem julgamento. Não damos voz a ninguém, até porque todo mundo já tem voz. A gente só escuta com respeito.
E pra entender melhor quem estamos ouvindo, desde 2025 passamos a catalogar as histórias contadas na página para entendermos se nosso discurso sobre diversidade estava alinhado com nossa prática. A gente sempre esteve ciente de que sim, mas com mais de 500 histórias no ar, a memória às vezes falha (risos) e não conseguíamos bater o martelo se histórias LGBTQIA+ eram maioria ou não, ou se tínhamos representação racial próxima ao demográfico brasileiro. Hoje sabemos, por exemplo, que em 2025 quase 20% das histórias publicadas têm o tema LGBTQIA+ como foco principal, e que 41% das pessoas entrevistadas são pessoas não-brancas. Ou seja, a diversidade não é uma meta, é consequência da escuta.
Vocês acham que essas vozes – muitas vezes silenciadas – encontram na página um espaço de reparação, visibilidade e acolhimento?
Sim. E a gente escuta isso delas. Muita gente chega dizendo que nunca contou aquilo pra ninguém, ou que nunca achou que alguém fosse se interessar pela sua história. O que a gente oferece é um espaço de dignidade. É poder contar sua vivência inteira, com começo, meio e fim, e ser respeitado por isso. Talvez não seja uma reparação completa porque isso exige política pública e transformação social mas é um começo de reconhecimento. E, pra muita gente, já é transformador.
Qual foi a história que mais mexeu com vocês até hoje? Já houve algum relato que vocês hesitaram em publicar?
É impossível escolher uma só. A gente costuma dizer que cada história deixa uma marca diferente. Algumas pela dor, outras pela força, outras pela simplicidade. E sim, já hesitamos em publicar alguns relatos, especialmente quando a pessoa ainda estava muito no meio do processo, machucada demais. A gente entende que nem toda história está pronta pra ser contada. E tudo bem. Nosso papel é respeitar o tempo do outro. Às vezes, ouvir sem publicar também é parte do processo.
Qual é a importância de falar de dor, perdas, traumas e recomeços em um tempo em que tudo parece tão acelerado?
Falar sobre isso é um ato de desaceleração. Quando a gente escuta alguém contando algo difícil, a gente para pra sentir, refletir, cuidar. Vivemos numa lógica de produtividade e performance, mas todo mundo sente. E ninguém deveria ter que esconder sua dor pra caber num feed bonito. Falar de dor é também falar de humanidade. É lembrar que a gente não está sozinho, e que tudo pode ser atravessado de forma menos solitária quando é compartilhado.

Como equilibrar a empatia pela dor do outro com o autocuidado emocional de quem lê, edita e compartilha esses relatos?
É um desafio real. A gente já se emocionou, chorou, se calou depois de ouvir certos relatos. Mas aprendemos, com o tempo, que empatia não é absorver a dor do outro, e sim respeitar essa dor. A gente cria pausas, se apoia, conversa sobre o que ouviu. E, principalmente, lembra que estar ali é um privilégio. Nem todo mundo confia a sua história a alguém. Então, a gente cuida das histórias, mas também cuida da gente pra continuar fazendo esse trabalho com o coração aberto.
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