Família
- Eduardo Papa
- 23 de mar.
- 6 min de leitura

Por Eduardo Papa*
Durante a chamada Idade do Bronze, que marcou a transição final do neolítico para sociedades sedentárias agrícolas e o desabrochar da vida urbana, surgiu a família patriarcal, tomando o lugar da organização familiar gentílica (tribal). Impulsionada pelo crescimento demográfico e desenvolvimento tecnológico da humanidade, essa nova forma de organização familiar se expande pelo mundo, Os “pater famílias” foram o esteio das legiões romanas e das falanges gregas, servindo de base para Estados poderosos. Consolidada na Europa e trazida para a América pelo cristianismo, a família que define a linhagem paterna para sucessão, embora ainda conviva com outras formas de organização familiar, tornou-se dominante no mundo atual.
Até o século XIX, o pátrio poder sobre a esposa e a prole era incontestável, mas as guerras mundiais obrigaram a participação feminina no mercado de trabalho e movimentos sociais, notadamente a Revolução Russa de 1917, abriram o caminho para a presença feminina na política. Na segunda metade do séc. XX, o surgimento de métodos anticoncepcionais eficientes e uma mudança comportamental no chamado “mundo ocidental” pareciam indicar uma fragilização da família tradicional autoritária. A disseminação do conhecimento da psicanálise freudiana e sua aplicação em metodologias educacionais; mudanças legislativas que consagram os direitos das mulheres e das crianças (no que o nosso país é exemplo mundial) e o desenvolvimento de um ambiente cultural de maior aceitação a diversidade de orientação sexual, que na gringa apelidaram de cultura woke, pareciam indicar que a velha família patriarcal estava ferida de morte.
Nosso século começa com uma explosão no uso da informática em todos os ramos da vida e uma transformação total na comunicação de massa, com as redes sociais conectando as pessoas e garantindo interatividade no processo. Ao mesmo tempo, o velho estandarte do integralismo ressurge com toda força: Deus, Pátria e Família. Na Rússia de Putin, Alexander Dugin cantou a pedra para o soerguimento da Mãe Rússia à condição de potência global, o resgate da tradição religiosa ortodoxa e o fortalecimento da família. Mais ou menos o mesmo lema embala os supremacistas brancos nos EUA, a estridente nazistada na Europa, o sionismo radical de Bibi em Israel, e até mesmo a turma da “segunda divisão” como Milei e Bolsonaro. Agora vamos ver qual o papel destinado à família nessa trinca de ouro do pensamento reacionário, desde o nazi-fascismo do século passado até a nova extrema direita mundial em ascensão.
Vamos começar com o depoimento de um personagem cuja posição no espectro ideológico não inspira qualquer dúvida: “... o fim último de uma evolução orgânica e lógica terá de ser sempre a constituição de uma família. Ela é a menor mas mais valiosa unidade na construção de todo o Estado.” ( Adolf Hitler: Mein Programm, 1932). Com efeito, a família patriarcal autoritária é o locus perfeito para a gestação da ideologia do Estado autoritário. Sigmund Freud descobriu que parte significativa de nossa vida psíquica reside em uma dimensão inconsciente, que desde a infância o ser humano tem uma sexualidade ativa e a energia por ela gerada, a libido, é o principal elemento na formação de nossa psiquê; que a sexualidade infantil é reprimida pelo medo do castigo (relação pai-filho complexo de Édipo), mas não deixa de existir e se manifesta no nível inconsciente; e que na educação dada nas famílias, o confronto dos desejos da criança com as medidas destinadas a sua repressão, antecipam o conflito futuro dentro do adulto entre a moralidade e o instinto.
A repressão da sexualidade na infância forma crianças medrosas e obedientes, impulsos vitais são associados ao medo, e a moralidade criada resulta na formação de indivíduos submissos, sem espírito crítico e perfeitamente adaptados ao poder autoritário. Eis a explicação para o fato de muitas pessoas apoiarem sua própria opressão: a luta constante contra suas próprias necessidades sexuais gera uma ansiedade inconsciente, que é o elemento fundamental para a formação do caráter reacionário e conduz ao pensamento místico religioso, responsável por transformar a sexualidade recalcada em resignação.
O fascismo precisa de pessoas reprimidas e insatisfeitas, suscetíveis a uma condição de infantilização, cuja necessidade de proteção leve a busca de um ditador para ocupar a função do pai autoritário, capaz de resolver todos os problemas - um mito. A clara identificação dos laços familiares com a estrutura política, explica a profissão de fé em defesa da família autoritária, da moralidade e do casamento apregoada pela extrema direita, pois ela é o baluarte do Estado autoritário. Não há ameaça mais séria para o fascismo que a classe baixa abandonar a atitude moralista, isso explica a aversão da extrema direita ao carnaval, o preconceito contra o funk e o pavor de atividades e culturais que induzam a reflexão, espaços capazes de abrir brechas no pânico moral utilizado para embotar a busca pela liberdade.
Na minha opinião, parte da esquerda atual incorre em um grave erro ao alinhar-se com a extrema direita na crítica a chamada cultura woke. Considerando aquilo que definem como pautas identitárias (feminismo, movimento negro, luta contra a homofobia, etc.) como causas secundárias, que servem como elemento diversionista na luta principal da classe trabalhadora contra a exploração econômica. A falta de sucesso dessa esquerda tradicional que definha a olhos vistos, assistindo horrorizada o fascismo crescer entre as massas populares, comprova o equívoco.
A explicação de seu fracasso pode ser encontrada por quem demonstrou grande capacidade de influenciar seu povo: “O povo, na sua esmagadora maioria, tem natureza e atitude tão femininas que seus pensamentos e ações são determinados muito mais pela emoção e sentimento do que pelo raciocínio. Esse sentimento não é complicado; pelo contrário, é muito simples e claro. Não há nuanças; há sempre um positivo e um negativo; amos ou ódio, certo ou errado, verdade ou mentira, e nunca situações intermediárias ou parciais.” (Adolf Hitler, Mein Kampf ).
Partidos e ativistas de esquerda continuam tentando politizar os segmentos populares pela exposição de sua situação econômica, tarefa hercúlea e de resultados limitados, pois a grande maioria das pessoas possui sérios entraves ao desenvolvimento do pensamento racional e associa inconscientemente a política ao perigo, desenvolvendo um comportamento de defesa contra a consciência de sua posição social, é o pobre coitado que se diz apolítico.
Uma massa de pessoas refratárias ao incômodo e doloroso processo da reflexão, mas que se deixa levar pelo misticismo do líder fascista com facilidade, pois é a fé e não a razão que oferece alívio para a angústia gerada pelo recalque de sua sexualidade. A participação em um movimento ideológico e a delegação de suas responsabilidades sociais ao seu líder infalível produz certezas absolutas e dissipa a tensão interior de pessoas frágeis emocionalmente e desamparadas no plano da educação formal. O resultado é a formação entre nós do que temos chamado pejorativamente de “gado,” magistralmente descrito pelo fundador da psicanálise:
“... um indivíduo numa massa, devido à influência desta, experimenta uma modificação muitas vezes profunda de sua atividade psíquica. Sua afetividade se intensifica extraordinariamente e sua capacidade intelectual se limita de maneira notável, e é evidente que ambos os processos estão orientados para uma adaptação aos demais indivíduos da massa; um resultado que só pode ser atingido mediante a supressão das inibições dos impulsos próprias a cada indivíduo e mediante a renúncia às conformações especiais de suas inclinações.” (Sigmund Freud, Psicologia das massas e análise do eu).
Não se pode estourar essa boiada a partir de qualquer argumentação lógica. A exposição de resultados econômicos positivos do governo, por exemplo, não tem a menor impacto em indivíduos fragilizados sexualmente, a percepção da realidade dessas pessoas não é determinada por pressupostos racionais, como aponta Wilhelm Reich:
“...o fascismo é ideologicamente a resistência de uma sociedade sexual e economicamente agonizante...... o medo da liberdade sexual, que nas concepções do pensamento reacionário se confunde com o caos sexual e a dissipação, tem um efeito inibidor em relação ao desejo de libertação do jugo da exploração econômica” (Wilhem Reich, Psicologia de massas do fascismo).
Quem sabe nosso presidente, ao invés de ficar apregoando os sucessos do ministro Haddad, não deva resgatar o mote de campanhas anteriores, já que o que parece embotar parte de nossa gente é o medo de ser feliz.
*Eduardo Papa - Colunista, professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)
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