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Justiça condena Prefeitura de São Paulo por negar aborto legal: um alerta sobre direitos, corpos e invisibilidades

  • Foto do escritor: Ronaldo Piber
    Ronaldo Piber
  • 10 de out.
  • 4 min de leitura

Decisão judicial que impõe multa de R$ 24,8 milhões à Prefeitura reacende o debate sobre saúde reprodutiva, omissão do poder público e a invisibilidade de pessoas trans e não binárias que também têm direito ao aborto legal


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Por Ronaldo Piber*


Na última quinta-feira (9), a Justiça de São Paulo condenou a Prefeitura da capital a pagar R$ 24,8 milhões de multa por descumprir decisões que determinavam a manutenção dos serviços de aborto legal na rede municipal de saúde.

O valor é resultado do acúmulo de multas por desobediência judicial desde dezembro de 2023, quando a atual gestão suspendeu o atendimento no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, referência histórica nesse tipo de procedimento.

O hospital, localizado na Zona Norte, era há anos o principal centro para casos de aborto legal em São Paulo — especialmente para mulheres e pessoas em situação de vulnerabilidade.


Desde o fechamento, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) moveu ações exigindo o restabelecimento do serviço, argumentando que a suspensão afetou diretamente vítimas de estupro, gestantes com risco de morte e casos de anencefalia fetal — situações em que o aborto é permitido no Brasil desde 1940.

O MP relatou que, sem o atendimento municipal, pacientes foram obrigadas a procurar ajuda em outros estados, ou, pior, recorrer a procedimentos clandestinos.

Direito, não ideologia


É importante lembrar: o aborto legal é um direito garantido por lei e reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal.


Negar o atendimento público nessas situações não é uma escolha política; é uma violação de direitos humanos, de autonomia corporal e de dignidade.

A omissão do poder público nesse contexto não apenas infringe a legislação, como reproduz a lógica da desigualdade estrutural: quem tem recursos financeiros busca soluções seguras, quem não tem fica à mercê do risco, do medo e da invisibilidade.

É sintomático que, em pleno 2025, ainda seja necessário recorrer à Justiça para obrigar um município a cumprir o mínimo — o que já está previsto no Código Penal e em normas técnicas do Ministério da Saúde.


O Estado não tem o direito de legislar sobre os corpos das pessoas; tem o dever de garantir acesso, acolhimento e segurança.


Invisibilidades dentro do debate

A pauta do aborto legal também precisa romper com um dos seus maiores silêncios: a invisibilidade das pessoas transmasculinas e não binárias que engravidam.

A linguagem das políticas públicas de saúde reprodutiva ainda é excessivamente centrada na ideia de “mulher cis”, ignorando que existem homens trans e pessoas não binárias com útero que também sofrem violências sexuais, engravidam e, em alguns casos, necessitam do aborto legal.


Quando esses corpos não são reconhecidos, o direito deixa de ser universal e se torna um privilégio identitário.


O atendimento hospitalar é muitas vezes constrangedor, violento e discriminatório — desde o uso de nomes sociais até o tratamento médico inadequado.

Essa exclusão agrava o sofrimento físico e emocional, além de afastar essas pessoas dos serviços de saúde por medo ou vergonha.


Portanto, o caso do Hospital Vila Nova Cachoeirinha não é apenas sobre o aborto em si, mas sobre o direito à existência digna de todos os corpos gestantes, independentemente de gênero, orientação sexual ou identidade.


Multa milionária, impacto humano

A multa de R$ 24,8 milhões imposta pela Justiça tem caráter pedagógico e simbólico: é uma tentativa de mostrar que o descumprimento de ordens judiciais e o desrespeito a direitos fundamentais têm consequências.

Mas, na prática, nenhuma quantia monetária compensa o sofrimento de quem foi desassistida.


Para cada milhão da multa, há histórias de medo, solidão e desespero.

Mulheres e pessoas trans que foram vítimas de estupro e precisaram peregrinar por hospitais, enfrentar olhares de julgamento e, muitas vezes, desistir de buscar ajuda.

Há o impacto emocional, o trauma psicológico, o risco físico — e o silêncio imposto por uma sociedade que ainda trata o tema como tabu.


O dinheiro pode servir de punição institucional, mas não repara o dano humano.


O que se espera, portanto, é que o valor sirva como alerta para que futuras gestões compreendam a gravidade de negligenciar direitos já garantidos.


O dever do Estado e o papel da sociedade

O Estado tem o dever de oferecer acesso universal, seguro e acolhedor a todos os serviços de saúde, sem discriminação.


E a sociedade civil tem o papel de fiscalizar e cobrar — não apenas quando o tema é popular, mas também quando se trata de minorias esquecidas.


A omissão política não é neutra: ela tem gênero, cor e classe social.


Mulheres negras e periféricas continuam sendo as mais penalizadas pela ausência de políticas públicas, e pessoas LGBTQIAPN+ permanecem sem reconhecimento nos protocolos de atenção básica.


Em um país onde o direito ao próprio corpo ainda é visto como uma concessão e não como um princípio, a luta pela equidade reprodutiva é também uma luta por cidadania.

No fim das contas.


Mais do que uma decisão judicial, este episódio é um espelho do Brasil que ainda insiste em negar humanidade a determinados corpos.


É o reflexo de um sistema que ainda entende moral como política pública, e fé pessoal como argumento de Estado.


Enquanto isso, vidas seguem em risco, sonhos são interrompidos e direitos são transformados em batalhas judiciais.


A pergunta que fica — e que deveria ecoar em todas as secretarias de saúde do país — é simples e profunda: até quando o direito de decidir, e o direito de existir, continuarão sendo tratados como privilégios?



*Ronaldo Piber é advogado e colunista do Pimenta Rosa

 
 
 

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