Laura Finocchiaro surfa a onda do tempo e relança hino censurado de 1983
- Pimenta Rosa
- 15 de abr.
- 12 min de leitura
Após mais de quatro décadas, artista recupera e lança o single 'Gayvotas Futebol Clube (Onda nova)', composto para um filme interditado pela censura da ditadura. Em entrevista exclusiva ao Pimenta Rosa, Laura revela bastidores da criação, ativismo e resistência como artista independente e militante LGBTQIA+.
Assim como um bom surfista precisa esperar a onda certa para se lançar ao mar, a cantora, compositora e multi-instrumentista Laura Finocchiaro precisou atravessar 42 anos de silêncio até ver renascer um dos marcos de sua carreira: o single 'Gayvotas Futebol Clube (Onda nova)'. A canção, composta para o filme Onda Nova – interrompido pela censura militar em 1983 – finalmente chega às plataformas digitais no exato momento em que o longa estreia nos cinemas. Referência da cena musical independente e ativista LGBTQIA+, a artista gaúcha compartilha com o Jornal Pimenta Rosa os caminhos que a levaram a resgatar a fita original da gravação.
O resultado é um reencontro com sua própria história, e com uma juventude atual que se reconhece na força poética e rebelde dessa 'onda nova'.
‘Em 1982, eu montei meu primeiro show autoral, onde eu tocava guitarra, liderava a banda, escrevia os arranjos e um trabalho feito basicamente com a minha parceira Leca Machado, onde eu já assumia a minha homo e bissexualidade, na verdade. Então, tudo muito disruptivo, tudo muito pioneiro para aquela época, início dos anos 80.’
Ao resgatar a faixa original gravada na década de 1980, restaurada e masterizada nos Estados Unidos, Laura também se reconecta com sua essência artística e afetiva:
'Eu fui criada nessa base, nesse pensamento, eu me sinto uma pessoa onda nova, porque inclusive eu assumi nessa época a bissexualidade por não ter dentro de mim esse preconceito. Desenvolvi em mim a capacidade de amar um homem ou uma mulher, independente do gênero, amor pelo amor, pela presença magnética e espiritual de um ser humano.'
Reconhecida por sua autenticidade, ela reafirma seu papel como artista em constante militância:
'Eu resisto ao machismo, eu resisto a essa sociedade heteronormativa, que não consegue entender uma compositora, guitarrista, cantora, com voz própria, com orgulho. Resisto ao preconceito de ser lésbica ou me assumir como bissexual e resisto ao etarismo atualmente, militando agora com as minhas rugas e o meu cabelo branco.'
Nesta entrevista exclusiva, publicada em duas partes, Laura compartilha com o Jornal Pimenta Rosa os bastidores do filme, da criação da música, o impacto da censura, sua trajetória pioneira, sua paixão por uma arte que atravessa o tempo como resistência e a atualidade de um trabalho que continua provocador, necessário e profundamente atual.
Veja a íntegra da primeira parte:

Foto divulgação
Como foi reencontrar a gravação original de "Gayvotas Futebol Clube (Onda Nova)" depois de 42 anos?
Pois é, pessoal do jornal Pimenta Rosa, imagina, eu sou cantora, compositora, produtora musical, guitarrista e arte educadora e desenvolvo, sem tirar o pé da música, essa carreira, sempre de forma independente, por questões éticas, por princípios morais e por paixão ao que eu faço e respeito a Deus da música, eu sou uma artista independente.
Então, 42 anos depois, quando um filme que eu participo é redescoberto, vira culto, cai nas telas internacionais, volta para as telas nacionais e a filha do diretor de um dos diretores Helena Garcia filha do José Antônio Garcia, me fala Laura lança esse single porque a minha filha, que tem 13 anos, está amando a música e as amigas dela dançam e elas querem ouvir. Então, para mim, isso foi uma vitória.
Além da experiência sonora mesmo, porque aí eu fui buscar, ela me empoderou, me deu, fez acreditar que eu poderia relançar o trabalho. Eu vim para os meus arquivos e aí encontrei primeiro a fita cassete, repleta de ruído. Fui, então, em busca da fita rolo, que eu lembrava que eu tinha a mix gravada numa fita rolo. E a partir dessa rolo, eu entro em contato com técnicos e engenheiros de som para recuperar a fita de forma, através de ácidos específicos para fazer uma lavagem na fita, para recuperar o estéreo que ela tinha no meio da canção havia sido perdido pelo tempo, pelo desgaste da fita.
Aí a gente consegue recuperar a fita e eu ainda mando para Miami, para o masterizador Carlos Freitas, que trabalha comigo desde o meu primeiro LP, quando eu cantei no Rock Rio, ele foi técnico, ele que gravou. Enfim, ele trabalha hoje no superestúdio em Miami e ele masterizou o som. E aí, ao escutar o som, a gente sente o amadurecimento da composição e a força sonora dessa composição. Então, para mim, um grande orgulho, o que prova que vale a pena fazer com o coração.
Como surgiu o convite para compor a trilha sonora de "Onda Nova"?
Eu sou de Porto Alegre, nascida lá, mas estudo música desde 9 anos de idade, mas em 1981 eu passei a cantar a convite de bandas e compositores em Porto Alegre. Em 1982, eu montei meu primeiro show autoral, onde eu tocava guitarra, liderava a banda, escrevia os arranjos e um trabalho feito basicamente com a minha parceira Leca Machado, onde eu já assumia a minha homo e bissexualidade, na verdade. Então, tudo muito disruptivo, tudo muito pioneiro para aquela época, início dos anos 80. E aí eu fui ficando conhecida por ser mulher, guitarrista, compositora, meus shows tinham bastante audiência, eu chamava muito a atenção das pessoas e da imprensa. E vim para São Paulo a convite de um festival desenvolvido no celeiro da música de vanguarda brasileira, na época o Teatro Lira Paulistana, onde surgiram ícones da música, como Itamar Assunção, Arrigo Barnabé, Grupo Junco etc. Enfim, vim parar nesse teatro, fiz um show que teve grande audiência. Quem abria o meu show era a banda Titãs, que na época chamava Titãs do Iê Iê. A partir disso eu fiquei conhecida na cidade. O teatro me chamou para continuar na cidade, para fazer um show que seria em maio. Esse show tinha acontecido em março. Então em março, que era o mês das mulheres, eles queriam que eu repetisse a dose e aí, por isso, eu fiquei na cidade, mas ao ficar na cidade eu só tinha uma mala repleta de sonhos e música eu precisava de um job e o primeiro job que surgiu foi o convite, através de uma produtora que era gaúcha e sabia que eu jogava bola, porque eu fazia faculdade de Educação Física nessa época, em Porto Alegre.
Eu sou uma ariana e ariano gosta de esporte minha vida inteira foi pautada no esporte e aquela consciência de mente em corpo sã. Por isso que hoje, aos 62 anos, eu continuo com a mesma energia que eu tinha quando eu tinha 14, 15 anos, quando comecei a me envolver profissionalmente com a música, porque eu trabalho o meu corpo e a minha mente para que ela se mantenha desperta e consciente lucida, sempre com essa ideia de que as coisas devem ser feitas com o coração, de coração para o coração. Então, eu desenvolvo minha carreira baseada no amor, na paixão e respeito as diferenças e a todos os gêneros, inclusive musicais.
Carregando essa bandeira de liberdade e de pioneirismo na minha carreira, essa produtora sabia que eu existia, me chamou para fazer a figuração no filme, que seria um filme, que teria um time de futebol feminino. E aí, que é o Gaivota Futebol Clube, então eu entrei para o time como figurante. E passei a ver aquela beleza da criação daquele filme, o envolvimento com as atrizes e as pessoas incríveis que participaram. E aí, de jogadora do time, eles precisavam de uma guitarrista para fazer as cenas no clube, onde Tânia Alves, a grande atriz e cantora Tânia Alves, fazia uma performance. Eles precisavam da música de abertura, que a princípio eles falaram com Rita Lee, eles queriam uma música de Rita Lee, mas o preço de Rita Lee era muito alto, não cabia no orçamento do filme. Eu, uma nova compositora, chegando na cidade, fresca e já com amadurecimento musical, os diretores me perguntaram se eu toparia fazer a composição. Eu topei e falei para eles: ok, se vocês pagarem o meu aluguel. Na época eu morava numa casa que alugava quartos, mas era uma mansão, uma ganipur, comandada por um casal gay, maravilhoso, inclusive não tinha nem chave nas portas, uma coisa incrível. Eu morava no quarto mais barato dessa comunidade. E aí eles pagaram esse aluguel, eu compus a canção e me utilizei de uma poesia de uma colega que era continuísta no filme, que é uma escritora chamada Cristina Santeiro. Ela me forneceu uma poesia que ela havia escrito para celebrar o filme. Eu peguei aquela poesia e inspirada em tudo que eu estava vivendo, eu escrevi a letra, desenvolvi a letra, a harmonia, o arranjo, a composição e depois levei para o produtor e diretor da trilha sonora do filme, Luiz Lopes, que foi quem arranjou e gravou no estúdio dele essa versão de Garotas Futebol Club Onda Nova.
Como foi a experiência de participar do como figurante e guitarrista?
A experiência foi incrível. Eu recém-chegada na cidade, mal conhecia as pessoas, não conhecia ninguém. E aí, de repente faço parte de um time que tinha como estrela principal a atriz Carla Camurati, que já vinha sendo bombada de um outro filme que essa mesma dupla de diretores, José Antônio Garcia e Ícaro Martins, tinham produzido, Estrela Nua, se não me engano, porque eles fizeram a trilogia do desejo. Em 82, eles já tinham estreado o primeiro filme com a Carla Camuratti; o segundo foi Onda Nova e o terceiro, se não me engano, Cidade Oculta em 1984. Enfim, todos produzidos na Boca do Lixo.
De repente eu estava num time que tinha Carla Camuratti como estrela principal Cristina Mudarelli uma grande atriz, a atriz Vera Zimmermann, que na época era novinha, mas é aquela Vera Gata, que o Caetano Veloso cantou, maravilhosa. Todas as outras participantes queridíssimas, umas mais velhas que eu, inclusive. Tudo era uma experiência, eu ficava olhando. Aí, de repente, eu me deparo com o Cinda Moreira, que era juíza do time e mãe de uma das jogadoras; Tânia Alves, que era amante do pai de uma das jogadoras; Regina Cazé, que faz uma ponta como conselheira da personagem da Cala Camurati; Caetano Veloso que faz uma ponta incrível no filme, sensual, onde rompe tudo, todos os parâmetros dentro de um táxi, transando com uma menina, e Casa Grande, Pitta e o outro jogador que se chamava Vladimir. Vendo esse elenco estrelar, chegando na cidade e ainda participando, sendo muito bem acolhida por todos, afinal de contas eu era uma artista nova, recém-chegada no pedaço, então as pessoas tinham interesse em saber de onde eu vinha, para onde eu ia, o que eu queria, qual era a minha origem. Foi muito acolhedor, muito legal e fora o que tinham muitas meninas lindas no time, então eu ficava olhando elas, cheguei a me apaixonar por uma delas, mas só de brincadeira, enfim. Foi uma experiência muito legal. inesquecível, que hoje eu guardo dentro do meu coração as sete chaves. Então, assim, a minha experiência como figurante, como jogadora de futebol, como guitarrista, foi super interessante, porque para mim tudo era um aprendizado. Ver como as pessoas se relacionavam, como elas agiam, como elas atuavam, subir no palco ao lado de Tânia Alves, que já era grande cantora e profissional na época. Foi tudo uma grande experiência que me trouxe amadurecimento e muita segurança, porque imagina depois ser convidada para compor a trilha, que a princípio eles queriam a Rita Lee, e eu fui a substituta de Rita Lee. Isso me deu uma moral muito grande. E no mesmo ano que eu cheguei na cidade, de repente eu estava na tela do cinema, na Mostra Internacional de Cinema, que foi quando o filme estreou antes de ser censurado pela ditadura.
"Onda Nova" retrata um time feminino de futebol nos anos 1980 enfrentando preconceitos de gênero e sexualidade. Como você vê a relevância desse tema hoje?
Bom, em primeiro lugar, a relevância é porque foi criado um filme em 1983, trazendo a temática da liberação de um time de futebol feminino, que até então havia sido proibido por Getúlio Vargas, lá em 1941. Assim, já é importante só por mostrar a criação de um time de futebol feminino, e com isso mostrar o papel protagonista das mulheres e o direito delas de lidarem com o corpo e com seus desejos da forma que quiserem, com liberdade e propriedade. Isso já tem uma importância incrível, porque esse filme a voz está nessas mulheres, que comandam a trama, são elas que mostram o pensamento daquela nossa cultura, que era abafada pela ditadura, mas que, na verdade, já gritava por liberdade. Esse grito tem a voz das mulheres, principalmente nesse filmem, ao se colocarem como jogadoras, ao enfrentar o preconceito dos pais, que falavam que isso era coisa de homem ou com relação ao sexo liberado. Enfim, isso empodera a mulher e mostra o orgulho de ser mulher. Então, tem relevância nesse sentido.
O outro sentido mostra a questão do sexo liberado, não formatado em gavetinhas, ou seja, menino transava com menino, tinha menina que transava com menina e tinha a mesma menina que transava com menina, transou com menino, as coisas não estavam engavetadas. A gente trazia, naquele momento, na nossa cultura a questão do amor livre que talvez tenha vindo da utopia dos anos 70, quando rompe com todas as amarras e passa a decretar o amor livre.
Eu mesma venho desse pensamento tópico, hippie, que acredita num mundo repleto de paz e amor. Esse amor, ele é um amor livre, possível de você amar um homem ou uma mulher, enfim, o que você quiser e você ser o que você quiser. Esse pensamento empodera a nossa liberdade. Eu fui criada nessa base, nesse pensamento, eu me sinto uma pessoa onda nova, porque inclusive eu assumi nessa época a bissexualidade por não ter dentro de mim esse preconceito. Desenvolvi em mim a capacidade de amar um homem ou uma mulher, independente do gênero, amor pelo amor, pela presença magnética e espiritual de um ser humano.
Essa é a importância, mostrar essa liberdade, que as coisas não estavam engavetadas e ainda mostrando um amor que não usava o plástico, porque a AIDS ainda não era conhecida no Brasil. Então, o amor era praticado, inclusive, sem camisinha, sem nada. E isso chama atenção dos jovens hoje que veem isso assim, porque é quase um disruptivo, porque hoje eles quase nem se amam, eles ficam amando à distância, com inteligência artificial, com celular, nas redes, não tem essa relação. Aquele filme não tem nem celular e as pessoas se relacionam, as pessoas desabam, desabafam e conversam entre si nos seus conflitos e se abraçam e se agridem e acaba tragicamente o filme, inclusive, por causa de uma atitude livre, né? Eu acho que esse filme também aponta o lado trágico dessa questão dos relacionamentos. Ser feminista, ele faz esse questionamento no final, assim, até que ponto a busca pelo prazer, a busca por essa liberdade, até que ponto ela pode ser de vida controlada, até que ponto é possível isso. Eu acho que esse filme tem esse caráter.
O filme foi censurado pela ditadura militar e teve sua exibição limitada na época. Como você vê essa retomada em 2024?
Eu vejo com aplausos, aplaudo, saúdo, lembro que é Lula quem está no poder, lembro da nossa luta contra o golpe, contra esse momento reacionário, essa era Trump 2.0 que a gente está vivendo, esse momento retrógrado de repressão, onde o poder e o dinheiro falam mais alto do que qualquer princípio. Eu acho que tem tudo a ver com o Governo Lula, com a nossa democracia ter sido defendida a unhas e dentes, e a gente hoje poder resgatar esse trabalho que foi censurado num momento que a censura não sabia nem dizer o porquê da censura, porque na verdade eles censuravam filmes que eram pornochanchada, mas esse filme não era. Esse filme tem uma estética, uma proposta de conteúdo, tem poesia, tem beleza, vai além só do sexo, pelo sexo.
Quando censuraram, na verdade, era um espanto com a liberdade que aquele filme propunha. Na verdade, mostrava o que acontecia com a nossa geração naquela época. Era assim. Realmente a gente viveu muito, muito gostosamente, com muito afeto, a gente podia mostrar o afeto. E a gente não era de plástico, a gente era de verdade. Aliás, eu ainda sou. Então, tem tudo a ver com a democracia, tem tudo a ver com esse momento que a gente precisa mostrar o que existe dentro do ser humano, que o ser humano não é uma máquina, o ser humano precisa de outro ser humano para se relacionar. Eu acho super importante ele vir à tona nesse momento, e eu saúdo a nossa democracia que permitiu que esse filme voltasse telas e com força total, em vários festivais do mundo, ganhando atenção de vários festivais LGBTs pelo mundo todo e ganhando as telas no Brasil, a própria Mostra Internacional ano passado, e a minha própria música, que eu estou lançando na minha plataforma musical Spotify, Deezer, etc., no meu canal no YouTube, Laura Finocchiaro, no meu site oficial, laurafinocchiaro.com.br, porque eu sou uma artista independente, com 42 anos de carreira, resistindo a todos os preconceitos, inclusive agora, ao etarismo.
Eu resisto ao machismo, eu resisto a essa sociedade heteronormativa, que não consegue entender uma compositora, guitarrista, cantora, com voz própria, com orgulho. Resisto ao preconceito de ser lésbica ou me assumir como bissexual e resisto ao etarismo atualmente, militando agora com as minhas rugas e o meu cabelo branco. Por isso, eu tenho a minha empresa musical, minha produtora musical, minha editora e meu selo musical que se chama Sorte Produção e através dele eu tenho 21 lançamentos, incluindo singles, EPs. É isso, me dá uma for muito grande. Eu sou uma artista que depende, claro, da democracia, pelo menos a democracia, mas na verdade a nossa cultura não vive uma democracia, ela é afunilada pela grande mídia que só produz lixo, que não dá oportunidade nos espaços públicos, nas redes, que são públicas e que deveriam ter obrigação de propagar a cultura brasileira, mas não propaga. Isso é democracia. Então, a gente vive numa democracia, mas que, na verdade, não é 100% democrata. E, por isso, sigo lutando, cantando em nome da justiça social, do respeito, da tolerância, do amor, do respeito à diversidade e a boa música, que a música seja sendo estudada para que ela seja elevada e produzida com qualidade.
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