O ESPETÁCULO DO EU
- Eduardo Papa
- 4 de mai.
- 8 min de leitura
Por Eduardo Papa*

Ilustração de Felipe Mendes - @ocoletordehistorias
Continuando nossa especulação sobre o que há de novo na modernidade, vou abordar um aspecto que a mim desagrada sobremaneira na atualidade. Não sou desses idosos que busca alegorias para sustentar que antigamente a vida era melhor, mesmo porque tenho a consciência de que isso não é verdade, a vida melhorou muito no Brasil e em todo mundo. Poucas décadas atrás, uma pessoa de setenta anos era vista como muito velha, e no geral estava bem prejudicada mesmo. A expectativa de vida cresceu exponencialmente, nos livramos ou controlamos várias moléstias, e chegamos ao ponto de problemas de saúde, antes impensáveis, como o abuso de drogas e doenças sexualmente transmissíveis crescerem na terceira idade. Somos hoje muito mais educados de que no passado recente, o analfabetismo foi praticamente erradicado e a escolarização básica universalizada; o racismo, a misoginia, a homofobia e outros preconceitos, que moldaram a infância desses velhotes que andam pelas ruas passando vergonha com a camisa da seleção, foram execrados e postos na ilegalidade; a comunicação viveu um progresso extraordinário, permitindo a rápida circulação de idéias e a troca de experiências, enfim vivemos um progresso gigantesco. Porém, além do bônus, o progresso traz também o seu ônus, e um comportamento natural e inocente das pessoas começa a adquirir um caráter destruidor – o exibicionismo.
Não que eu encare a vaidade como um pecado ou coisa assim, ao contrário a considero um movimento saudável do ser humano de elevação de seu amor próprio. Qual a coisa mais bonita que uma mocinha na frente do espelho, experimentando o modelito e as bijous para sair na night? Talvez somente uma senhora idosa fazendo a mesma coisa, desprezando as marcas do tempo, e mostrando a si mesmo que ainda vive e pode ser feliz. Até os crentes, que há tempos exigiam de seus fiéis trajes sóbrios e antiquados evoluíram, hoje tem o crente ostentação, e os cultos nas comunidades de maior poder aquisitivo parecem desfiles de alta costura. O desejo de brilhar, de parecer belo e agradável é natural do ser humano, é um comportamento que compartilhamos com diversas espécies de animais de reprodução sexuada, quem não conhece e admira a dança de acasalamento do pavão? Aquele que nega qualquer vaidade e diz não ter nenhuma preocupação com a imagem, ou é um mentiroso ou precisa procurar um atendimento psicológico. Entretanto, o choque causado pela disseminação do uso das novas tecnologias de comunicação no cotidiano das pessoas, impossível de ser acompanhado pelo desenvolvimento de regras de civilidade em sua utilização, na velocidade em que ocorreu, não veio sem consequências desagradáveis e mesmo perniciosas.
A primeira delas é a exposição exagerada. Mesmo antes do advento das redes sociais, o simples uso do telefone celular gerou uma situação muito comum e tremendamente embaraçosa - o eventual compartilhamento involuntário da conversa telefônica com pessoas ao redor do usuário do aparelho, afinal, elas podem acontecer a qualquer hora e em qualquer lugar. A construção de uma ética aceita coletivamente para o uso de uma nova tecnologia que surge não é uma tarefa fácil, e o ser humano tem encarado esse complexo problema, desde a idade das cavernas, e na era contemporânea, com seu progresso técnico vertiginoso, com cada vez mais freqüência, e o caso do telefone é emblemático. A incrível materialização do sonho milenar da humanidade de comunicar-se a distancia e o acelerado progresso da tecnologia que o viabilizou exigiram a criação e atualização constante de regras sociais de convivência, que não podem ser impostas pelo poder político ou religioso, mas que surgem e são validadas exclusivamente pela aceitação geral.
No início do século passado, a coluna de variedades de um popular jornal parisiense publicava a seguinte história: um poderoso magnata oferecia um banquete de gala em seu palacete, quando o mordomo se aproxima e lhe fala algo ao pé do ouvido, o anfitrião levanta-se solenemente, ajeita a casaca, pede desculpas, e retira-se para atender um telefonema. Em sua ausência um convidado gaiato comentou: então essa é a grande invenção do telefone, alguém liga de alhures e você tem que atender imediatamente, como um criado. Logo o telefone deixou de ser uma excentricidade e se tornou indispensável, e a tecnologia disponível limitava a expansão das redes, criando um gargalo para o desenvolvimento da economia e limitações no dia a dia das pessoas. Sou do tempo que era comum anotar ao lado do nome do contato na caderneta de telefone a expressão por favor, indicando que o telefone era de um vizinho camarada. O telefone era caro, um luxo precioso, as pessoas brigavam na fila do telefone público. No nosso século tudo mudou, hoje temos mais telefones ativados que habitantes no país, apenas para evoluir do por favor para falar, para o pelo amor de Deus cala a boca.
Vou utilizar o relato de duas experiências extremamente comuns, que provavelmente o leitor também já vivenciou, para ilustrar a questão: estava eu na sala de espera de um consultório médico, dividindo um espaço minúsculo com outro paciente, que atende uma ligação e me obriga a ouvir, muito a contragosto, a sua conversa. Em poucos minutos, fiquei sabendo tratar-se de um sovina, pois negava à esposa, que queria fazer as unhas, uma importância ínfima para o padrão de quem dispõe daquele tipo de serviço médico; deixou claro também que era um sujeito dominado pela mãe, pelas demonstrações de servilismo a sua progenitora que exigia da pobre esposa, de cuja fidelidade parecia ter grandes dúvidas; tudo isso em um papinho demorado, limitado por um vocabulário paupérrimo e sujeito a constantes alterações de humor. Felizmente nunca mais vi o pobre coitado, mas imagine se na semana seguinte esbarrasse com o gajo em alguma situação profissional ou social? As pessoas perderam os limites de sua exposição pública, e algumas aproveitam para dar vazão a seus recalques psíquicos. Difundiu-se o hábito de usar uma chamada telefônica, para falar não apenas com o seu interlocutor, mas também para a audiência nas proximidades. Certa feita, em um vagão do metrô, uma mulher, sentada ao meu lado, discutia ao telefone, ao que tudo indica, com um familiar próximo de vulgo Madruga, encenando um verdadeiro show, em altíssimo volume, e não bastasse ser uma pessoa corpulenta, valorizava o espetáculo com um gestual de picadeiro, me provocando um verdadeiro sentimento de opressão, enquanto a personagem expunha o quanto era forte, determinada, corajosa e capaz de solucionar qualquer problema. Quem nunca ouviu esse discursinho ridículo da boca de gente que transparece evidente fragilidade e incapacidade de lidar com situações complexas?
Essa inadequação social no uso da telefonia móvel, não chega a ser uma jabuticaba, mas parece que outras culturas conseguiram lidar melhor com a questão, dizem que no metrô de Tóquio reina um silêncio sepulcral, mas nem o Império do sol nascente conseguiu escapar da praga da nossa era – a influência das redes sociais. Talvez os esquimós da Sibéria e do Alaska, ou os bosquímanos da África Austral e outras comunidades isoladas ainda estejam livres da contaminação, mas trata-se de uma pandemia perigosa, agressiva e de difícil controle. Encastelada no Vale do Silício, na costa oeste da América do Norte, desenvolveu-se uma plutocracia que almeja dominar o planeta, e chegou ao auge do poder, acumulando riquezas inimagináveis, vendendo nada mais que a oportunidade de seus clientes demonstrarem aquilo que de mais feio carregam dentro de si. Disseminando o ódio, esgarçando o tecido social ao fazer da mentira profissão de fé e cultivando todo tipo de pensamento doentio por engajamento (dinheiro), a confraria dos bilionários das empresas de alta tecnologia é o produto mais refinado da ordem econômica neoliberal e o melhor instrumento para a consecução de seu projeto de implantação do caos, em busca do lucro máximo.
O genial filósofo italiano, Humberto Eco, ainda na virada do século, pouco antes de sua morte, explanou como as redes sociais seriam o sepulcro da civilização. Pessoas toscas e de ideias curtas, sempre constituíram a maioria da população, e são terreno fértil para o surgimento de concepções retrógradas e estapafúrdias, que a sociedade letrada conjurava facilmente, por meios institucionais e pela criação de um sistema de defesa moral coletivo, do que é politicamente correto e aceitável. Para exemplificar, algumas pessoas podiam achar que a terra é plana, porém, ao externar sua opinião, eram logo dissuadidas ao esbarrar em um consenso geral de que a terra é esférica, as redes sociais furam essas barreiras de contenção, facultando ao boçal encontrar outros que compartilham de sua estultice e pronto, surge um movimento dos terraplanistas. Eis o mecanismo simples e eficiente, que permitiu a um punhado de bilionários solapar o resultado de milênios de evolução da humanidade, lançando um tsunami de mediocridade sobre os quatro cantos da terra, com seus robôs inundando o planeta com mentiras e desinformação, explorando os sentimentos mais sórdidos para minar os laços de solidariedade entre as pessoas, difundir o ódio e preconceitos, destruindo vínculos e espaços de convivência tradicionais, para canalizar os relacionamentos para o espaço cibernético que controlam.
Hipnotizadas por suas telas azuis, as pessoas não sentem as profundas transformações que vivemos. Professores e catedráticos com décadas de estudo são substituídos por influencers digitais imperfeitamente alfabetizados, quando não, por um coach mirim. O conhecimento é desvalorizado e vendido em lata, afinal, qual o sentido de queimar as pestanas estudando se a inteligência é artificial. Reduzimos nosso vocabulário e nossa língua empobrece, encaixotados em um modelo de comunicação pasteurizado, como o kkkkk tão engraçadinho! Nossos sentimentos vão sendo interpretados e expressos através de emojis e memes e, portanto, nossas reações passam a ser infantilizadas ou brutais. A reflexão sobre as coisas sai do nosso cardápio, substituída por concepções prontas disponíveis no menu de sua tela, que podem ser consumidas no conforto de sua cadeira gamer.
E que os vira-latas de plantão não fiquem assanhados, não foi só essa turba de patriotários idiotizados daqui que caiu na esparrela. A refinada Inglaterra, com Cambridge, BBC e os seus séculos de cultura, engoliu o Brexit, por ordem dos bilionários, e virou a guiana dos EUA na Europa. O povo da Ucrânia foi lançado em uma guerra, onde está vendo o seu país ser destruído, para servir de instrumento ao avanço do capital dos EUA e seus aliados europeus na Federação Russa e Ásia Central. Nossos vizinhos argentinos estão vendo os caquinhos que restaram de seu Estado se dissolvendo e amargando uma penúria extrema, enquanto Milei joga videogame com Elon Musk. Os desejos da plutocracia são insaciáveis e globais e até agora só contidos pela força. Pela força do exército russo, que está impondo uma derrota humilhante à OTAN na Ucrânia e pela força do Partido Comunista Chinês, que mantém os bilionários na linha em seu país. Outros focos de resistência pelo mundo se aglutinam em torno dessas duas potências, em uma guerra não declarada, que está sendo travada no mundo inteiro.
A plutocracia do Vale do Silício e de Wall Street assumiu o comando de um império em decadência, e nenhum império desaparece sem lutar. A guerra que vivemos não se limita aos exércitos nos campos de batalha, a guerra é comercial, tecnológica, informacional, envolve todos segmentos e grupos sociais, e a batalha decisiva está sendo travada nos corações e mentes de todos nós, e aqui retornamos ao “espetáculo do eu”. O caos gerado pela derrocada do império neoliberal, transformou-se em um grande conflito entre a civilização e a barbárie, em que todos nós, queiramos ou não, somos soldados a serviço de um dos lados. Engajar-se no exército da barbárie é fácil, basta seguir a manada, acalentar o seu ódio, cultivar a grosseria, prezar pela ignorância e manter-se em um mundo paralelo, em que seus preconceitos possuem valor universal. Lutar em defesa da civilização dá mais trabalho, mas faz de você uma pessoa melhor, basta procurar manter sua sanidade mental, sexual e afetiva, praticar a honestidade e cooperação em sua vida profissional, procurar estudar e ampliar seus conhecimentos, compartilhar o conhecimento adquirido e, sobretudo, repudiar a cultura da lacração/cancelamento.
Seremos muito mais felizes, quando o verbo lacrar voltar a ser utilizado apenas com o sentido de selar uma correspondência ou um ambiente, e quando a maioria das pessoas não se demonstrar tão realizada com o papel de acusador, com o dedo em seta. Eu me sinto forte e sereno, e a simples visão do destempero dessa gente iracunda que serve ao império, reforça em mim a certeza da vitória. A luz do conhecimento construída, ao longo dos séculos, pela humanidade, não pode ser apagada de forma melancólica por essa gente de tão pouco talento e arte, e esse império comandado pelo presidente da cor de doritos não pode nem com a República Democrática dos Pinguins. Veja o vídeo:
*Eduardo Papa - Colunista, professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)
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