Os escravos da Ambev: carnaval, trabalho e precarização
A folia do Rio de Janeiro revela mais que alegria: a luta dos ambulantes expõe a face oculta da exploração no modelo neoliberal.

O carnaval carioca é sinônimo de festa, música e multidões, mas, por trás do brilho dos blocos e da alegria contagiante, há uma realidade que passa despercebida pela maioria. Em cada esquina da cidade, os ambulantes, carregando isopores pesados com latas de cerveja e sacos de gelo, tornam-se personagens centrais dessa celebração. No 'maior bloco' do carnaval carioca, formado pelos 'Escravos da Ambev' — título do artigo de Eduardo Papa, jornalista e artista plástico —, somos convidados a uma profunda reflexão sobre as condições de trabalho desses personagens e como elas refletem a lógica de exploração econômica imposta pelo modelo neoliberal.
Veja, a seguir, a íntegra do artigo de Eduardo Papa:
OS ESCRAVOS DA AMBEV
O maior bloco de carnaval do Brasil
*Por Eduardo Papa
Com a aproximação do entrudo momesco, inevitavelmente a folia começa a dominar os assuntos do carioca, talvez pelo financiamento da festa pelo jogo do bicho, a competitividade perpassa quase todas as atividades da cultura carnavalesca. Salvo a deliciosa exceção do bloco dos sujos, tudo é medido e comparado, as escolas de samba e blocos de enredo são meticulosamente avaliados em certames organizados, da mesma forma que fantasias de destaques em concursos (que que já tiveram maior relevância), a grande mídia criou uma profusão de premiações específicas para o evento, clubes e promoters disputam a posição de organizar o baile mais animado, etc. O próprio gigantismo crescente da festa, conduziu a recorrente pergunta, qual o maior bloco do carnaval do Rio? O tradicional Cordão da Bola Preta passou a disputar a posição com blocos de artistas muito populares (Preta Gil, Anita e outros), ensejando a cada ano uma minuciosa, e por vezes controversa, estimativa do tamanho das multidões.
O colunista que arvora-se aqui a matar a charada em definitivo, apontando qual o mais numeroso bloco do carnaval carioca, pouco ou nada entende do assunto e lastreado apenas em sua longa e continuada experiência como folião emite seu parecer. O maior bloco do carnaval carioca é o dos 'ESCRAVOS DA AMBEV' que, embora sem de fato constituir-se em um bloco compacto de pessoas. é composto por uma multidão incalculável. Em qualquer lugar da cidade onde se ouça o repique de um tarol, antes mesmo da resposta do surdo surge um escravo da Ambev, sua presença garantida em qualquer baile de bairro ou de comunidade, acompanham em grande número todos os grandes blocos, promovem um verdadeiro cerco ao sambódromo e aglomerações expressivas nas cercanias dos eventos importantes. Mesmo em horários em que não há nada acontecendo não é difícil encontrar algum pela cidade, seja em portentosas barracas de madeira ou em carrinhos e triciclos móveis, estarão lá os escravos da Ambev, espalhados em toda parte, circulando no meio da multidão com até o peso de um saco de cimento em bebida e gelo pendurado nas costas, esbanjando alegria e simpatia seguem incansáveis, garantindo a distribuição dos produtos de uma das maiores corporações do Brasil.
Ora que insulto! Que discriminação classificar os trabalhadores ambulantes do carnaval como escravos, um desrespeito! Não, longe disso, o desejo é que essa reflexão possa contribuir para ampliar a consciência sobre a essência das relações econômicas, que estão se tornando dominantes no mundo do trabalho conforme se consolida o projeto liberal. Antes de dizer que nosso personagem é um empreendedor, que está aproveitando as oportunidades da sociedade para gerar riqueza; que poderia estar roubando e matando, mas está sendo útil; que deve ser elogiado pelo seu esforço para prover sua família e toda sorte de juízo de valor subjetivo, que tal avaliar fria e objetivamente a natureza real da atividade?
O ambulante vai ao mercado e compra os produtos da Ambev à vista pelo preço do varejo, sua única condição de financiar a atividade é recorrendo a juros bancários oferecidos pelas operadoras de cartão e instituições financeiras em geral (como sabemos escorchantes), depois de comprar a mercadoria precisa montar a infraestrutura para armazenar, gelar e transportar as bebidas, muitas das vezes tem custos adicionais de taxas para municípios, extorsão de criminosos locais, etc. E qual é o preço de venda? No geral, afora situações momentâneas em que a demanda cresce de maneira exponencial, o preço regula com o preço praticado pelos varejistas formais da região, bares e restaurantes, de modo que o lucro obtido é pequeno, a não ser que consiga vender toneladas de latinhas, nosso valente e animado empreendedor não vai conseguir realizar mais do que o mantenha nos limites de uma subsistência precária. Ora que é esse ambulante senão um escravo?
Os antigos romanos ganharam a fama de fundarem o direito ocidental e de fato eram minuciosos na formalização legal dos aspectos mais diversos da sua vida social e, sendo a escravidão a base de seu sistema de trabalho, nos deixaram registros bastante precisos e elucidativos da organização da servidão das pessoas, delimitando dezesseis tipos de escravos: o prisioneiro de guerra, o que nasceu de uma escrava, o escravizado por dívidas, por seus crimes, etc. Chama a atenção uma dessas classificações, a do 'serventia in buona fidias', aquele que permanece na servidão por ignorar ser livre ou achar mais vantajosa a posição de escravo que ocupa do que as alternativas que vislumbra na sociedade. Quem pode negar que a definição criada por legisladores e juristas do Império Romano expressa bem relações desenvolvidas sob o império do capital? O que são, não apenas os camelôs, mas também os milhões de entregadores, uberistas e tantos outros trabalhadores precarizados, geralmente sujeitos a jornadas de trabalho desgastantes e por vezes perigosas para garantir uma subsistência miserável, que não escravos?
Os grilhões não são mais correntes de ferro, mas aplicativos de celular, o açoite de couro substituído por redes sociais (não que por vezes as polícias públicas ou privadas não retomem antigas práticas de coerção física) e a garantia da legitimação dessa exploração é destruição de qualquer preceito moral que aponte para a empatia com o outro, a furiosa e sem limites luta pelo dinheiro, na qual se baseia a mentalidade da sociedade neoliberal. Com uma nova roupagem e usando tecnologia moderníssima, são perpetuadas relações milenares de submissão e exploração dos seres humanos mais vulneráveis, como que dando razão ao pensador italiano Guiseppe di Lampedusa de que 'as coisas devem mudar para que tudo continue como sempre foi'.
*Eduardo Papa é professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)
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