Quando a fakenews é a profissão de fé
- Eduardo Papa
- 6 de jul.
- 8 min de leitura
*Eduardo Papa

Ilustração de Felipe Mendes - @ocoletordehistorias
Domingo de sol e vento fresco na orla de Copacabana, dois patriotas de quatro costados, com uma sólida amizade forjada desde as memoráveis jornadas pelo impeachment da Dilma, encontram-se para protestar contra a ditadura do STF.
O Orlandão, com 70 anos de praia bem vividos, mas que aparenta muito menos. Contador aposentado pelo INSS, que ainda tem que fazer algumas declarações de IR, para reforçar o orçamento e garantir o aluguel do conjugado em que vive na Prado Júnior. Uma vida bem modesta, mas o que no fundo o incomoda é a solidão, desde que sua ex-mulher o abandonou, há vinte anos (imaginem, alegando maus tratos a farsante), que não conseguiu arranjar outra alma gêmea. Culpa é claro das mulheres, pobres coitadas que não souberam valorizar seus olhos azuis, sua estatura elevada e porte marcial.
As manifestações patrióticas foram sua maior alegria nos últimos anos. Uma oportunidade de socializar, demonstrar seus conhecimentos sobre a revolução popular na Ucrânia, as tramóias da “bigfarma” na fantasia da pandemia e outros assuntos, sobre os quais recolheu um grande volume de informações via internet. Além disso, o mais importante, criaram uma oportunidade preciosa de conhecer jovens senhoras como a Dona Magnólia.
Embora a idade seja segredo guardado a sete chaves, Mag (como gosta de ser chamada), não aparenta mais de sessenta anos. Em dia com a balança, é frequentadora assídua de academias, com alto desempenho em todos os aparelhos, faz cross fit, zumba, etc. Mantendo uma alimentação balanceada e com algum investimento em botox (que a deixou parecida com a Ana Maria Braga, de quem não perde um programa). Magnólia Bustamante não é uma coroa de se jogar fora, e sabe disso. Capricha na maquiagem e nos modelitos ousados em verde e amarelo, enlouquecendo o velho Orlandão. Na verdade, recebia os galanteios do amigo sem muito entusiasmo, afinal do que ela gostava mesmo era de participar das dancinhas coreografadas e fofocar com as miguxas.
As manifestações foram minguando e a animação diminuindo, então Orlandão encontrou seu espaço, era meio chato, mas pelo menos fortalecia no açaí e na água de coco. Não que ela tivesse problemas financeiros, afinal, nunca precisou trabalhar, graças a pensão de oficial da marinha deixada pelo pai. Apesar de nunca ter se casado, morava com dois filhos, um formado em gastronomia e outro em relações internacionais, que apesar de seu preparo esmerado e grande capacidade, tentam há anos sem sucesso colocação no mercado de trabalho (por culpa dos governos de esquerda é claro). Ainda dá para viver bem no apartamento próprio no Grajaú (embora meio apertado só com dois quartos), mas ficou claro que a situação não era mais a mesma, quando foi obrigada a dispensar a empregada e ficar só com uma diarista (culpa da Benedita, que inventou essa lei ridícula de assinar a carteira das domésticas).
O encontro dos pombinhos ocorreu por volta das onze horas, quando já estava claro que o negócio ia ser um fiasco daqueles, começa então o papinho de cerca Lourenço.
“Oi, tudo bem?... Tudo e com você?.... Tudo legal, pouca gente né?.... Pois é povo sem consciência, por isso conseguem fraudar as eleições quando querem...Pois é, mas os quartéis estão vigilantes, é só o povo apoiar que o mito vai varrer essa esquerdalha, acabar com a ditadura da toga e colocar o Xandão e o cachaceiro do Lula em cana... E a mídia manipulando as imagens para diminuir as nossas manifestações.... Ah, mas isso vai acabar, tenho fé que os militares vão botar o Brasil nos trilhos”.
Começam os discursos no trio elétrico, que Mag faz questão de acompanhar na fila do gargarejo, com a vibração da galera. Orlandão adora, pois aproveita para tirar uma casquinha, com umas encoxadas e a mãozinha boba. Em ponto de bala, nosso herói convida sua musa para o açaí com biscoito Globo e água de coco (Orlandão precavido já conhecia a pedida e levava o dinheiro trocadinho). E os assuntos começam a se tornar mais próximos:
“E aquele seu amigo, Antenor se não me engano, tava sempre com você? ...Morreu de Covid... Que tristeza um cara tão forte, tão jovem! ...Pois é ele tomou cloroquina, mas não tomou ivermectina nem azitromicina, o tratamento tinha que ser completo.... E aquele casal de jovens que as vezes vinha com você, o rapaz se não me engano era engenheiro e trabalhou nas obras da Copa né? ....A Neide e o Armando...Isso... Que chato ele perdeu o emprego e foram morar na casa dos pais dele em São Gonçalo.... que pena! ...Mas o Armandinho é guerreiro, pegou o carro e tá rodando 12 horas por dia no Uber.... Tá vendo, quem se esforça e quer trabalhar sempre dá um jeito”.
Com o olhar fixo, verdadeiramente fascinado pelos seios de Mag, apertados em um top estiloso, com lantejoulas na altura dos mamilos, Orlandão assume a postura do garanhão conquistador. Chega bem pertinho e, entre uma chuva de perdigotos e farelos de biscoito de polvilho, parte para o ataque:
“Tá vendo, se você fosse uma dessas feministas do sovaco cabeludo e usasse máscara, eu não teria a oportunidade de ver esse seu sorriso maravilhoso” (ignorando a ausência do pré-molar superior direito).
Após disparar mais dois ou três clichês, toma coragem e parte para o bote final do macho dominante:
“Eu moro sozinho e dispenso empregada, porque acho que tolhe minha liberdade, como não gosto de comer na rua todo dia, aprendi a cozinhar e faço pratos ótimos. Você não gostaria de almoçar comigo hoje? Moro aqui bem pertinho”.
Magnólia, mulher rodada, sabia muito bem que ela seria o prato principal, mas porque não? Afinal era um cara bacana, não serve para apresentar para as colegas da academia, durango e com aquela barriga, sem chance! Mas entre quatro paredes, quem sabe? Além do que tava no rango, o ônibus ia demorar, e tinha uma boa chance de os filhos terem comido tudo o que tinha sobrado da véspera. Topou.
No caminho, o exultante Orlandão percorria a orla de Copacabana todo pimpão, com seu troféu pelo braço, antegozando as peripécias a que se propunha a realizar com seu pitel, em sua espaçosa cama de viúvo. Tecendo loas ao seu uísque especial (na verdade uma bebida ordinária que armazenava disfarçada em uma antiquada garrafa bico de jaca), as iguarias que costuma preparar, e falando sobre a vista espetacular de 2 metros de praia, da janela de seu cubículo.
Tão preocupado que estava em exibir sua conquista, para os frequentadores do pé sujo da rua, para o porteiro do prédio, para os vizinhos e para desconhecidos em geral, só foi se lembrar de que era início do mês, e que não tinha ido ainda ao Mundial fazer compras ao colocar a chave na porta. Que maçada! Enquanto enrolava a parceira com doses generosas de uísque vagabundo (com gelo feito com água de coco para disfarçar), revirava a geladeira e a dispensa, desesperado para arranjar alguma coisa.
Magnólia por seu turno, sentada na ensebada poltrona defronte a televisão, indignada com a cobertura parcial da Globolixo sobre as manifestações, desligou o aparelho. Com a garganta ardendo da bebida barata e observando o muquifo fedorento em que tinha se metido, deixou a mente vagar ao longe, lembrando dos tempos de glória, quando o papai era vivo, do baile de debutante no Clube Militar, dos pais de seus filhos...
Até que seu anfitrião arma a mesa e as cadeiras desmontáveis, coloca uma toalha de TNT, põe a mesa com pratos duralex e serve o almoço do chef. Uma gororoba insuportável, parida de umas batatas chocas que estavam na geladeira e uma lata de atum salvadora, com bastante maionese e acompanhada de um vinho barato que estava aberto na geladeira. Garantida a azia e quem sabe uma diarréia noturna, o garanhão empilha os pratos na pia, desmonta a mesa abrindo espaço para suas manobras, enquanto Mag resignada senta na cama, produzindo um rangido constrangedor. É chegada a hora!
Orlandão, como um possesso tira, a camisa da CBF, rodando-a sobre a cabeça e a atira para o alto (ela fica presa a uma das pás do ventilador de teto), Mag se ajeita recostando-se na cabeceira da cama de maneira sensual, produzindo um rangido ainda maior. O macho avança célere sobre sua presa, trocam beijos apaixonados com hálito de atum e vinho barato. Orlandão se acaba, lambe, apalpa, se esfrega, fala obcenidades, se esbaldando, com os gemidos acompanhando a sinfonia produzida pela velha cama.
Mag, experiente, procura com as mãos conferir o instrumental do parceiro e descobre que, além de não ser nada digno de nota, ainda ia demorar para ficar em condições apropriadas, exigindo talvez um esforço desproporcional ao resultado esperado. Mas resolve entrar no clima e apimentar a situação:
“Vem meu general, quero o seu torturador na minha perseguida”! Orlandão fica enlouquecido: “Gostosa! Tesuda! Minha Carla Zambelli”, em um frenesi de luxúria consegue consumar o intercurso carnal, após uns cinco minutos de um esforço hercúleo, com um urro animalesco, o macho explode com sua virilidade em clímax.
A nossa patriótica heroína, já meio que resignada pelo tratamento precoce dispensado, desvencilha-se do guerreiro, que inebriado e ofegante recupera-se do esforço. Levanta, bota a roupa, separa o dinheiro da passagem (para não abrir a carteira no ônibus) e se despede do amante:
“Tenho que ir, daqui a pouco a condução começa a ficar cheia com pessoal saindo da praia”. Orlandão com o orgulho do macho pergunta: “Então gostou”? Mag, antes de abrir a porta, responde manhosa: “Foi demais querido, na próxima manifestação tem mais hein gostosão”.
O buzum demorou para chegar, Mag foi em pé quase a viagem toda, e quando chegou em casa deu de cara com a vizinha do andar de cima na portaria, que comentou: “Nossa saiu cedo para ir na passeata e tá chegando só agora, o que aconteceu”? Mag respira fundo e assume uma postura de superioridade para responder:
“Nooossa miga, nem te conto! Conheci um gato suuuper lindo, ele me levou para almoçar em um restaurante suuuper chique, e depois fomos para o apê dele suuuper luxuoso. Ficamos horas fazendo um sexo selvagem. Animal”!
A vizinha, que tinha saído de casa para espairecer um pouco, deixando o marido vendo futebol e se encharcando de cerveja, suspira e responde:
“Poxa amiga que legal! Eu bem que gostaria de ter uma vida emocionante como a sua”. Mag, com um ar blasé, responde: “Por isso que eu nunca me casei, não abro mão de aproveitar a vida intensamente.”
MORAL DA HISTÓRIA
No mundo neoliberal, como não é possível, para a maioria esmagadora das pessoas, satisfazer os desejos a que são continuadamente estimuladas, a “saída honrosa” oferecida pela cultura das redes sociais é comer sardinha e arrotar caviar. Estão se formando legiões de mitômanos, que vivem fantasias criadas por eles mesmos. Fantasias enquadradas em um variado menu de cenários esteriotipados, que lhes são oferecidas como modelos de sucesso. Cada um vai criando suas próprias historinhas, ou se apropriando de histórias alheias, que são incorporadas em suas vidas. Tendo o condão de atenuar a brutalidade imposta pela negação daquilo a que foram induzidas a de fato adorar. A fakenews vira uma profissão de fé, portanto, não deve causar estranheza que as pessoas acreditem piamente nos maiores absurdos, desde que venham no formato certo para encaixar-se na miséria intelectual e espiritual em que estiverem enquadradas.
*Eduardo Papa - Colunista, professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)
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