Túmulo de Madame Satã pode se tornar o primeiro patrimônio LGBTQIA+ reconhecido pelo Iphan
- Pimenta Rosa
- 29 de out.
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Reconhecimento do local onde o artista viveu e foi sepultado em Ilha Grande é visto como um gesto histórico de reparação e resgate da memória queer brasileira.

O corpo de João Francisco dos Santos, imortalizado como Madame Satã, repousa há décadas no cemitério da Vila do Abraão, em Ilha Grande, na Costa Verde do Rio. Agora, conforme o portal G1, o túmulo que guarda sua história pode se tornar o primeiro patrimônio LGBTQIA+ tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) — um gesto inédito de reconhecimento a uma das figuras mais ousadas, complexas e simbólicas da cultura queer brasileira.
A proposta partiu do pesquisador Baltazar de Almeida, morador de Angra dos Reis, ativista do movimento negro e LGBTQIA+, e estudante de Turismo na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Ao investigar o território para um projeto turístico, ele redescobriu a presença e a importância de Madame Satã na Ilha — onde o artista viveu seus últimos anos, após quase três décadas de prisão.
“É um resgate de memória, uma forma de honrar quem resistiu. Eu sinto uma conexão espiritual com essa história. Sou de religião de matriz africana, e acredito que o axé de Madame Satã continua vivo por aqui”, afirma Baltazar.
O Iphan já iniciou os estudos técnicos sobre o local. O processo de tombamento é longo e criterioso, podendo durar até cinco anos, e envolve pareceres, consulta pública e votação no Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
Enquanto isso, um abaixo-assinado com mais de 800 apoios circula na internet em defesa do reconhecimento. Baltazar também protocolou um segundo pedido: a criação de um departamento específico no Iphan para o tombamento de patrimônios ligados à causa LGBTQIA+, a fim de corrigir o apagamento histórico de personagens e espaços que moldaram a cultura brasileira.
“A história LGBT está viva, mas quase nunca lembrada nos livros, nos nomes de ruas, nos patrimônios. Precisamos ocupar também os espaços da memória”, reforça o pesquisador.
Quem foi Madame Satã — a lenda da Lapa
Nascido em Pernambuco, João Francisco dos Santos foi entregue ainda criança a um senhor de engenho e viveu em situação análoga à escravidão. Fugiu para o Rio de Janeiro, onde se reinventou entre as vielas e bares da Lapa. Lá, criou o personagem Madame Satã — mistura de artista, capoeirista, malandro e símbolo de liberdade.
Negro, pobre e abertamente homossexual, Madame Satã enfrentou preconceitos, perseguições policiais e o moralismo da época. Entre as brigas e as performances, ele se transformou em mito — ora temido, ora amado, mas sempre fascinante.
“Madame Satã era corpo e resistência. Num tempo em que ser preto, LGBT e artista era crime, ele fez da rua o seu palco e da sua vida um manifesto”, explica Baltazar.
Após quase 28 anos de prisões intercaladas, o artista fixou residência em Ilha Grande, onde encontrou acolhimento e liberdade. Participava do carnaval local, cozinhava para amigos e mantinha viva a persona que o tornou imortal.
Hoje, entre a mata e o mar da Ilha, o túmulo simples de Madame Satã se prepara para ganhar novo sentido: de lugar de esquecimento a espaço de celebração.
“É mais que um tombamento. É um ato de amor, de axé e de justiça histórica. É o Brasil dizendo que corpos dissidentes também fazem parte de sua memória cultural”, conclui o pesquisador.




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