Dia da Consciência Negra e População LGBT+: por que essa data redefine múltiplas lutas por direitos no Brasil?
- Ronaldo Piber

- há 2 dias
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*Por Ronaldo Piber
O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, é mais do que uma homenagem à memória de Zumbi e Dandara dos Palmares ou um reconhecimento da contribuição histórica do povo negro no país. É um marco para repensar como o racismo estrutura a sociedade brasileira e como essa estrutura estabelece quem vive com mais segurança — e quem vive sob risco.
Nesse cenário, um grupo ocupa a zona mais exposta de vulnerabilidade: a população negra LGBT+, que convive não apenas com o peso do racismo, mas também com a LGBTfobia, o patriarcado e as desigualdades de classe.
A data, portanto, não diz respeito somente à luta racial. É também um convite para olhar para vidas que estão na intersecção de múltiplos preconceitos e que, justamente por isso, são mais afetadas por violências institucionais e sociais.
1. Entre o racismo e a LGBTfobia: corpos que carregam múltiplas exclusões
Pessoas negras LGBT+ vivenciam uma condição conhecida como “vulnerabilidade interseccional”, em que diferentes formas de opressão se combinam.
Na prática, isso significa:
Pessoas negras têm menos acesso a oportunidades;
Pessoas LGBT+ sofrem violência moral, física e institucional;
Quem pertence aos dois grupos sofre ambas as exclusões, simultaneamente.
O impacto é visível. O Dossiê da ANTRA demonstra que:
82% das mulheres trans e travestis assassinadas no Brasil são negras;
Quase todas foram mortas de modo extremamente violento;
A expectativa de vida de pessoas trans no Brasil gira em torno de 35 anos, mas cai ainda mais entre mulheres trans negras, muitas vezes empurradas para a marginalização e para a prostituição compulsória por ausência de acesso a educação, emprego formal e saúde;
Para homens gays negros, a violência não é menor: agressões policiais, hipersexualização, estigmas sobre comportamento e exclusão do mercado de trabalho moldam trajetórias desde cedo. O racismo opera como filtro prévio que determina quem é visto como ameaça, quem é tratado como suspeito e quem é considerado “excedente social”.
Assim, o Dia da Consciência Negra é também um lembrete de que não existe debate sobre direitos LGBT+ sem discutir desigualdade racial.
2. Saúde: racismo e LGBTfobia também determinam quem adoece e quem recebe cuidado
O impacto da interseccionalidade é especialmente evidente no campo da saúde.
2.1. Acesso desigual a atendimento
Pessoas LGBT+ negras:
procuram serviços de saúde mais tardiamente;
enfrentam mais barreiras para realizar exames preventivos;
sofrem discriminação de profissionais;
são mais frequentemente ignoradas ou subestimadas durante atendimentos de urgência;
têm maior probabilidade de abandono terapêutico por sentir que não serão respeitadas.
2.2. ISTs e HIV: políticas que falham com corpos negros
Embora as campanhas de prevenção tenham avançado entre a população branca nos últimos anos, a epidemia de HIV não diminuiu entre homens gays e bissexuais negros.
Estudos mostram que:
a taxa de novas infecções cresce em jovens negros gays e bissexuais;
a comunicação de risco é menos efetiva para essas populações;
a PrEP (profilaxia pré-exposição) ainda é menos acessível para negros.
Ou seja: não falta tecnologia — falta equidade.
2.3. Pessoas trans negras: um retrato de exclusão absoluta
Elas enfrentam:
recusa explícita de atendimento em clínicas;
falta de acesso à hormonioterapia segura;
negligência em atendimentos ginecológicos ou urológicos;
violência obstétrica simbólica e institucional.
A ausência de políticas públicas que considerem raça e gênero ao mesmo tempo perpetua adoecimento físico e emocional.
3. Educação e mercado de trabalho: o funil da desigualdade
O racismo mantém pessoas negras afastadas de posições de poder. A LGBTfobia faz o mesmo com pessoas LGBT+. Quando esses marcadores se misturam, cria-se um funil quase instransponível.
3.1. Educação
Jovens LGBT+ negros são:
mais vítimas de bullying no ambiente escolar;
mais expulsos de casa na adolescência;
mais propensos a abandono escolar;
menos representados no ensino superior.
A evasão escolar entre jovens LGBT+ negros ocorre tanto pela violência homotransfóbica quanto pelo racismo naturalizado dentro da escola.
3.2. Mercado de trabalho
Travestis e mulheres trans negras permanecem praticamente excluídas do emprego formal;
Homens gays negros raramente ocupam cargos de liderança, mesmo quando possuem capacitação semelhante aos homens gays brancos;
Mulheres lésbicas e bissexuais negras enfrentam duplo teto de vidro: o de gênero e o racial.
A soma dessas desigualdades resulta em maior precarização e menos mobilidade social.
4. Cultura, religiosidade e identidade: apagamentos dentro e fora da comunidade LGBT+
É impossível falar de cultura brasileira sem reconhecer a contribuição de pessoas negras LGBT+:
do samba às escolas de samba, onde travestis e gays negros foram e são protagonistas;
das religiões de matriz africana, que acolhem e protegem corpos dissidentes;
das expressões periféricas, como o vogue, o passinho, o afrofunk e os bailes;
do ativismo político que moldou o movimento LGBT brasileiro.
Apesar disso, muitas dessas contribuições foram apropriadas, embranquecidas ou invisibilizadas.
Até dentro do próprio movimento LGBT+, lideranças negras tiveram menor reconhecimento histórico — reflexo da lógica racista que estrutura toda a sociedade.
O Dia da Consciência Negra reivindica justamente o contrário: reconhecer quem sempre esteve à frente da resistência.
5. Violência institucional: quando o Estado também discrimina a população negra LGBT+ convive com:
maiores índices de abordagem policial;
prisões arbitrárias;
violência física e verbal cometida por agentes públicos;
falta de proteção jurídica efetiva;
maior vulnerabilidade à violência urbana.
O Estado brasileiro, que deveria garantir proteção, muitas vezes reforça a marginalização.
Políticas públicas universais não bastam: é preciso criar políticas interseccionais, que considerem raça, gênero e sexualidade de forma simultânea.
6. Por que o Dia da Consciência Negra importa para essa população?
Porque ele evidencia:
6.1. Que o racismo é estrutural e atinge com maior força pessoas negras LGBT+
Tratar apenas da questão racial sem olhar para identidade de gênero e orientação sexual invisibiliza parte significativa dessa população.
6.2. Que a luta por igualdade precisa ser plural
Não existe emancipação negra plena se corpos negros trans continuam sendo os mais assassinados do Brasil.
6.3. Que as políticas públicas devem ser segmentadas
Saúde, educação, habitação e segurança pública precisam reconhecer as particularidades de quem vive na interseção de opressões.
6.4. Que a cultura negra LGBT+ é patrimônio nacional.
Resgatar essa história é fortalecer representatividade e identidade.
7. Conclusão: 20 de novembro é também um dia LGBT+
O Dia da Consciência Negra não pertence apenas à pauta racial — ele atravessa todas as lutas por direitos humanos no Brasil.
Quando olhamos para a população negra LGBT+, percebemos que:
os riscos são maiores;
as violências são mais graves;
e as oportunidades, mais escassas.
Reconhecer essa realidade é essencial para romper ciclos históricos de exclusão e construir políticas públicas realmente efetivas.
A data nos lembra que a luta antirracista é inseparável da luta contra a LGBTfobia, porque milhões de pessoas vivem as duas, todos os dias, no mesmo corpo.
20 de novembro, portanto, não é apenas sobre memória — é sobre futuro.
E esse futuro só será possível quando todas as identidades negras forem reconhecidas, protegidas e celebradas.
*Ronaldo Piber é advogado e colunista do Pimenta Rosa





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