Anistia, Convenção Americana de Direitos Humanos e a População LGBT
- Ronaldo Piber
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Ronaldo Piber*
A palavra anistia carrega um peso simbólico e jurídico significativo. Em essência, trata-se de um perdão estatal que extingue a punibilidade de determinados crimes ou penas, como se os fatos não tivessem existido. Nas últimas décadas, a anistia esteve presente em momentos de ruptura ou transição política em diversos países, especialmente na América Latina.
No Brasil, a Lei da Anistia de 1979 é talvez o exemplo mais emblemático. Ela foi conquistada por meio de intensa mobilização social, visando libertar presos políticos, trazer de volta exilados e permitir a participação de opositores na vida pública. Contudo, sua redação abriu espaço para uma consequência polêmica: beneficiou também agentes da repressão envolvidos em tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados durante a ditadura militar. Essa ambiguidade é até hoje alvo de debates no Supremo Tribunal Federal, na Comissão de Anistia e em cortes internacionais.
É aqui que a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, ganha protagonismo. Ratificada pelo Brasil em 1992, ela estabelece que crimes de lesa-humanidade não podem ser apagados por leis de anistia. Tortura, execução sumária, violência sexual institucionalizada e desaparecimentos não prescrevem e não podem ser objeto de esquecimento oficial. O Estado brasileiro, portanto, tem o dever de investigar, julgar e reparar essas violações.
Anistia e a população LGBT
Embora as narrativas oficiais sobre ditadura e anistia frequentemente invisibilizem a comunidade LGBT, não se pode esquecer que lésbicas, gays, travestis e transexuais foram alvos sistemáticos da repressão. Policiais invadiam bares e boates, prendiam travestis em operações arbitrárias e fichavam homossexuais como “elementos perigosos”. A marginalização de corpos dissidentes fazia parte de uma engrenagem autoritária que não se limitava à perseguição política convencional.
Ao reivindicar memória e justiça, o movimento LGBT exige o reconhecimento de que a violência de Estado também foi dirigida contra sexualidades e identidades de gênero dissidentes. Isso torna inaceitável qualquer proposta de anistia que apague violações praticadas contra essas pessoas ou que crie brechas para a repetição da impunidade. A CADH é clara: não se pode anistiar o inaceitável.
O pedido de anistia por Bolsonaro
O debate atual sobre anistia no Brasil tem como pano de fundo os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas e depredadas por extremistas que contestavam o resultado das eleições presidenciais. Jair Bolsonaro e seus apoiadores passaram a reivindicar uma “anistia ampla” para os condenados, alegando perseguição política e apelando para uma falsa equivalência com a anistia concedida no final da ditadura.
Esse pedido, porém, esbarra em várias contradições:
1 - Não houve resistência democrática em 8 de janeiro, mas sim tentativa de golpe contra instituições legitimamente eleitas.
2 - A CADH impede que atos que atentam contra a ordem constitucional sejam objeto de anistia, pois configuram violações graves da democracia.
3 - Conceder anistia nesse contexto seria enviar uma mensagem perigosa: de que ataques ao Estado de Direito e à convivência democrática podem ser cometidos sem responsabilização.
O alerta para a população LGBT
Historicamente, discursos autoritários e práticas de violência política se misturam a ataques contra minorias. Durante o governo Bolsonaro, não foram poucas as vezes em que declarações oficiais e políticas públicas expressaram hostilidade contra a comunidade LGBT. O perdão sem julgamento aos atos de seus apoiadores significaria normalizar uma cultura de impunidade que, na prática, reforça a vulnerabilidade de grupos historicamente perseguidos.
Se uma democracia é capaz de absolver coletivamente aqueles que atentaram contra ela, qual será a mensagem transmitida às travestis assassinadas nas ruas, aos jovens LGBT vítimas de bullying, às lésbicas que sofrem violência corretiva ou às pessoas trans impedidas de acessar trabalho e saúde? A anistia, nesse caso, deixa de ser um gesto de reconciliação e se torna um instrumento de silenciamento e exclusão.
Memória, verdade e reparação
O futuro democrático que buscamos precisa ser inclusivo e plural. Isso significa:
a) resgatar a memória das violações cometidas no passado, inclusive contra a comunidade LGBT;
b) assegurar que nenhuma lei de anistia seja utilizada para apagar crimes de ódio, tortura ou atentados contra a democracia;
c) reconhecer que reparação histórica não é apenas indenização, mas também o direito à visibilidade e à verdade.
A Convenção Americana de Direitos Humanos dá ao Brasil não apenas a obrigação legal, mas também a oportunidade moral de reafirmar que não existe democracia sem diversidade, e não existe justiça sem responsabilização.
Por isso, a sociedade precisa estar atenta: a anistia que se discute hoje não é um detalhe técnico, mas um teste sobre a qualidade da nossa democracia. Cabe a nós exigir que ela não se transforme em um salvo-conduto para autoritarismos de ontem ou de hoje.
*Ronaldo Piber é advogado e colunista do Pimenta Rosa