De onde vem o medo do comunismo?
- Eduardo Papa*
- há 1 hora
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Que partido de oposição não foi acusado de comunista por seus adversários no poder? Que partido de oposição, por sua vez, não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a pecha infamante de comunista?
(Karl Marx, in Manifesto do Partido Comunista, 1848)

*Eduardo Papa
Logo nas primeiras linhas do manifesto em que apresentou ao mundo a proposta do comunismo, Marx já apontava o desconhecimento geral e a desinformação proposital sobre o seu conteúdo. Quase dois séculos depois, pouca coisa mudou. Até hoje, poucos sabem o que ele é, e muitos ainda o usam como espantalho para aterrorizar mentes simplórias. Vamos então aproveitar esse espaço aqui para explorar um pouco o polêmico tema; o que é o comunismo.
No ano de 497 a.C. o Cônsul Agripa Menênio Lanato, para conter uma revolta de plebeus indignados com os privilégios dos patrícios romanos, usou de uma fábula em sua retórica. Em seu famoso discurso, os diversos órgãos do corpo revoltaram-se contra o estômago, acusando-o de apenas usufruir do trabalho de todos sem nada produzir, deixaram de alimentá-lo e como consequência enfraqueceram todo o corpo, em prejuízo geral. Em 1888, exatamente 2.385 anos depois, o operário anarquista Pierre Degetier compôs, usando um poema de outro operário anarquista, que lutou na comuna de Paris, Eugéne Pottier, a Internacional, canção que virou hino do movimento comunista no mundo inteiro. A canção dá a resposta ao cônsul Menênio, que os plebeus da época não conseguiram elaborar, quando afirma: “se nos faltarem os abutres não deixa o sol de fulgurar.”
Desde a aurora da civilização, que potentados submetem multidões a várias modalidades de servidão. Revoltas sangrentas contra a desigualdade ocorreram em todas as épocas e em todos os rincões do planeta. Explicadas, pela teoria marxista, como uma luta entre classes sociais de interesses econômicos antagônicos, que permeia toda a nossa história e que, após o advento do capitalismo, despiu-se de todas as veleidades ideológicas e religiosas, reduzindo-se a nua e crua exploração econômica, ao transformar a força de trabalho em uma mercadoria comprada pelo capital. Quando os trabalhadores deixaram de ser obrigados a trabalhar por deuses ou demônios, mas apenas por um contrato com os donos dos meios de produção (fábricas, fazendas, etc.), passaram a vislumbrar a possibilidade de questionar sua posição na sociedade, e até mesmo a legitimidade da propriedade privada sobre os meios de produção.
Ainda no bojo da Revolução Francesa, a Conjuração dos Iguais de Gracchus Babeuf (1796) já antecipava o conflito entre capital e trabalho, que explodiu na Europa nos levantes dos anarquistas no século XIX e alcançou outro patamar na Revolução dos Bolcheviques russos em 1917, um processo histórico em que foi construída a idéia de que pode haver um mundo sem a exploração do homem pelo homem. Uma teoria elaborada por Karl Marx, desenvolvida e aperfeiçoada por inúmeros seguidores, e que serviu de base para diversas experiências políticas revolucionárias em todas as partes do mundo, que mesmo seguindo caminhos e apresentando resultados diversos, tinham em comum os pressupostos do manifesto comunista de 1848. Algumas experiências foram efêmeras, como a República Socialista Soviética de Munique (1919); algumas desastrosas, como a de Pol Pot no Camboja (1975/78); outras fundamentais para a formação do mundo moderno, como a de Lênin na Rússia e Mao Tse Tung na China. Mas o que ninguém pode negar é que o comunismo veio para ficar.
Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que não há nenhuma sociedade comunista no mundo. Na verdade, segundo a teoria marxista, o comunismo é quase uma utopia, uma fase avançada do desenvolvimento humano, quando após a superação do capitalismo a nível global, poderia surgir uma sociedade capaz de abolir o conceito de mercadoria. Uma engenharia social capaz de garantir a propriedade coletiva dos meios de produção, libertando o desenvolvimento tecnológico da lógica do lucro. Criando assim uma condição de abundância, em que a sociedade proverá a cada um de seus membros o bastante para suas necessidades, cobrando de cada um segundo suas possibilidades e capacidades. Para alcançar esse idílico futuro, é necessário um estágio em que as relações de produção capitalistas seriam substituídas pela propriedade coletiva dos meios de produção – o socialismo.
O que há de significativo no mundo mais próximo disso é a China, em que o Estado é controlado pelo Partido Comunista e serve como instrumento para a implantação progressiva do socialismo, que, segundo eles mesmos, ainda está por ser concluída. Por vezes, pode parecer desanimador para os adeptos da causa, que o país de vanguarda no processo tenha o maior número de bilionários do mundo, e ainda apresente um elevado grau de desigualdade social. Mas foi buscando competir até superar a economia do centro capitalista, que a China conseguiu alcançar as condições materiais e o desenvolvimento tecnológico, capazes de garantir a soberania necessária para avançar no seu modelo de desenvolvimento econômico planejado, sem aceitar a subordinação ao imperialismo. Somente um gigante colossal poderia dar cabo dessa tarefa, o destino da tão galharda e querida, mas tão pobre e pequenina Cuba, deixa claro que não basta querer, é preciso poder.
A teoria marxista é complexa e abrangente, estabeleceu os parâmetros básicos da economia moderna, definindo o conceito de valor (valor de troca, valor de uso, mais valia), definiu o conceito de mercadoria, e suas propriedades aplicadas ao trabalho como mercadoria e deixou claro como a riqueza é produzida e dividida. Pensadores de todo o mundo desenvolveram a teoria marxista, procurando adaptá-la as condições de suas próprias formações sociais. Reduzindo o espectro da análise ao nosso país, para efeito de simplificação, vou adotar o formato de perguntas e respostas diretas, abordando alguns dos principais pontos polêmicos e nebulosos sobre o assunto, e que são recorrentes nas conversas do dia a dia dos brasileiros.
Lula e o PT são comunistas? Não. Muito embora alguns petistas possam sê-lo, o PT é um partido social democrata de centro, com uma agenda nacionalista, de defesa de políticas de proteção social e promoção da classe trabalhadora, mas sem questionar a propriedade privada, no máximo procurando encontrar seu caráter social. Lula é uma grande liderança popular, oriundo da classe trabalhadora, que representa bem nosso povo, mas em nenhum momento questiona a ordem capitalista, limitando-se a defender a suavização de seus aspectos mais dilapidadores e violentos.
Os comunistas pretendem estatizar todas as empresas? Não. Apenas as empresas estratégicas do setor de infraestrutura, do setor financeiro e as grandes corporações. Nenhum boteco ou alambique vai ser expropriado, o salão de beleza, o mercadinho do bairro e a imensa maioria das empresas vão continuar da mesma maneira, apenas serão submetidas a uma legislação que impeça a exploração do trabalho e a imposição de condições indignas e degradantes aos empregados.
O comunismo vai perseguir as religiões? Não. A relação do estado comunista com as religiões é mais ou menos igual a que já é estabelecida pela atual constituição brasileira, que garante ampla liberdade religiosa em um estado laico. O que não pode é usar Igreja para lavar dinheiro e esconder atividades ilícitas, motivos que levaram a Igreja Universal a ser expulsa de Angola, por exemplo.
O comunismo vai acabar com as famílias? Não. O que o estado socialista não prevê é a manutenção de estruturas familiares arcaicas e opressivas, que anulem a individualidade de seus membros ou conservem um poder que impeça a liberdade de participação de todos em condições de igualdade na nova ordem social. Inclusive acolhendo o surgimento de novas formas de família, não tradicionais.
O comunismo irá expropriar a casa e todas as propriedades das pessoas? Não. Ninguém vai obrigar você a ceder cômodos de sua casa para outrem, ou impedir que você conquiste sua casinha para veraneio. O que não está previsto é alguém manter dezenas de imóveis alugados ou fechados, sem função social, enquanto outras pessoas não possuem um teto para se abrigar.
O comunismo vai acabar com a liberdade de expressão das pessoas e impor uma rígida censura as redes sociais e todas as mídias? Não. Apenas a imposição de leis que protejam a integridade do Estado e da ordem social, algo parecido com a legislação de proteção do estado democrático de direito que já possuímos e está sendo aplicada contra os golpistas pelo STF. Além de um controle público que impeça as redes sociais de continuarem como um espaço sem lei, onde crimes graves, como a pedofilia, por exemplo, que são punidos severamente no mundo real, sejam cometidos livremente na internet.
Os comunistas pretendem tomar o poder à força e implantar uma ditadura? Bem, na teoria sim, afinal o socialismo, etapa que antecede ao desenvolvimento do comunismo, segundo a teoria marxista, foi concebido como uma ditadura do proletariado sobre a burguesia, de modo a garantir a coletivização dos meios de produção, mas na prática a situação é bem outra. A esmagadora maioria das forças políticas de esquerda no Brasil, aceita os marcos da legalidade instituídos pela constituição de 1988. Quem costuma desobedecer aos limites e extrapolar as “quatro linhas” estabelecidas pela constituição é a direita, como tivemos a oportunidade de observar.
Os comunistas vão liberar geral as drogas? Muito embora setores progressistas de centro e esquerda venham defendendo a legalização do consumo de algumas drogas leves, como a maconha, nas sociedades socialistas a política é outra bem diferente. Uma das primeiras medidas de Mao Tsé Tung em 1949 foi abolir as casas de ópio; na URSS, a repressão era duríssima; mesmo na caliente e tropical Cuba não tem liberalidade nenhuma nessa área. Alguém aí topa levar uns baseados para fumar na Coréia do Norte?
Vou entregar a matéria para publicação com a sensação de esse glossário seria interminável, para fechar o assunto no momento, vou relatar uma situação que vivi no final da minha carreira como professor. Em uma turma do último ano do ensino médio, um aluno negro retinto me pergunta, com uma ponta de inconformismo: “professor, por que o nazismo é proibido e o comunismo não”? Os anos de experiência me permitiram a resposta imediata: Porque o comunismo é uma doutrina política que defende a mudança de relações econômicas na sociedade, enquanto o nazismo prevê a supremacia de um grupo social e racial. E se os comunistas da URSS não tivessem vencido a guerra que estamos estudando, provavelmente você não estaria aqui para me fazer essa pergunta.
*Eduardo Papa - Colunista, professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)

