QUAL A NOVIDADE NA MODERNIDADE?
- Eduardo Papa
- 27 de abr.
- 9 min de leitura

*Por Eduardo Papa
Cheguei aos sessenta e seis anos com a pretensão de achar que consegui compreender as mudanças que aconteceram em torno de mim, e me proponho a fazer com o leitor uma viagem ao passado, buscando ilustrar com as experiências que vivi, as transformações operadas em nossa sociedade, nas últimas décadas, em que a minha geração assistiu ao surgimento, a afirmação e a construção do mundo neoliberal. Para meus contemporâneos, tentarei trazer uma reflexão sobre aquilo que vivenciamos, para os mais jovens, talvez possa trazer a oportunidade de entender um pouco mais do mundo de seus pais e avós. Para tanto, vou abordar aspectos corriqueiros do cotidiano da vida das pessoas e decidi começar pelo básico do básico da organização de qualquer estrutura doméstica - como encher a despensa.
QUAL A NOVIDADE DA MODERNIDADE?
1 - O supermercado
Quando eu era bem pequenino, achava que o leite vinha de alguma entidade mágica, tipo o Papai Noel ou coisa parecida. Via antes de dormir minha mãe colocar as garrafas vazias fora de casa, e pela manhã elas apareciam cheias, uma coisa fantástica! O pão também vinha na porta, o padeiro trazia de bicicleta um cesto cheio de bisnagas, chegava bem cedinho, enrolava quantas pedissem em um papel cinza e recebia por mês. A carne comprava-se no açougue do seu Manuel, no dia de fazer, pois não passava pela cabeça de ninguém congelar carne ou qualquer outra coisa em casa, o congelador das geladeiras que se usava não comportava muito mais que as bandejas de gelo, no máximo mais um pote de sorvete para as crianças e uma ou duas garrafas. O peixe se comprava na feira, ou com seu Guiseppe, um peixeiro italiano, que parava seu triciclo as sextas-feiras em frente à oficina do sapateiro, o mesmo local onde as quintas o tripeiro estacionava o seu, trazendo o fígado e outros miúdos. Legumes, verduras e frutas vinham da feira livre, duas por semana no meu bairro, sendo que a mais distante ficava a duas quadras de casa. Secos e molhados, o feijão, o arroz e o toucinho vinham do armazém do seu Albano que, de tamanco e camiseta, anotava no caderno e recebia por mês, sempre esperto para a molecada não meter a mão no baleiro. As bebidas, quando em maior quantidade, eram encomendadas no depósito, quando pouca coisa era só ligar para o boteco do Luciano que vinha geladinha.
A expressão fazer compras tinha para mim um significado completamente diferente do que tem hoje, era um passeio agradabilíssimo, algo como ir a uma loja de departamentos, como a Sear’s ou a Mesbla, para satisfazer algum desejo ou necessidade de consumo. Porém, em algum momento, começou a aparecer na televisão, também uma grande novidade da época, uma propaganda com uma porquinha dançando o chá, chá, chá, anunciando as Casas da Banha, que concorria com o Disco quando surgiram os supermercados no Rio. O povo adorou, era super chique o sistema de autoatendimento, igualzinho ao que a gente via nos filmes americanos. As crianças passaram a se aboletar nos carrinhos de compras (fazem isso até hoje). As sacolas de papelão que distribuíam para os clientes faziam o maior sucesso e logo se incorporaram no dia a dia das famílias, e a forma de se fazer as compras começa a mudar radicalmente.
As vantagens na logística e na negociação com fornecedores, que a operação com grandes volumes de mercadoria propicia, trazem grande vantagem comercial aos supermercados, que passam a dominar o mercado varejista voltado para o consumo doméstico. Silenciosamente, sumiram da nossa vida o peixeiro e o tripeiro, bem como o sapateiro, o amolador de facas, o funileiro, o engraxate e um sem-número de mascates e prestadores de pequenos serviços. Seu Manoel fechou o açougue e voltou para a terrinha, a loja virou um salão de beleza. Seu Albano morreu, o armazém ainda existe, funciona como uma loja de conveniência e na distribuição de botijões de água (coisa que antigamente ninguém cogitava comprar). Das duas feiras do bairro, a que ocorre aos domingos cresceu e se transformou, incorporou barracas de artesanato e de comidinhas de rua, convive com uma roda de samba e diversas atividades culturais, virando um point turístico da cidade, enquanto a que ocorre no meio da semana está minguando e tende a acabar. Até o boteco fechou, acompanhando a tendência de extinção do chamado “pé sujo”. Em breve o miserável não vai ter nem onde tomar um trago, só mesmo comprando uma “cracudinha” no supermercado, onde tem que entrar com muito cuidado para não apanhar do segurança.
A indústria de alimentos também passava por um processo acelerado de transformação, se alguém oferecesse para mia nona Maria Cattaneo, que fazia a pasta aos domingos na sua máquina italiana, um nhoque desses que hoje vem embalado em plástico, decerto ia tomar um passa fora (a velha era braba). Mas a mudança era inexorável e a tecnologia aplicada na produção de alimentos essencial para abastecer milhões de pessoas amontoadas em megalópoles, acabou o tempo de comprar a galinha no Aviário Carioca e trazer o sangue para fazer ao molho pardo. As embalagens tornaram-se mais eficazes e sofisticadas, o leite que eu achava que vinha do céu, passou a ser vendido em sacos plásticos, em pó e agora em caixas. A diversificação e o aumento na oferta de refrigeradores e freezers permitiram o crescimento da oferta de produtos congelados, surgiu o forno de microondas e acabou a comida em “banho Maria.”
Entretanto, o mundo dos supermercados está longe de ser um paraíso idílico, a concorrência feroz, a financeirização dos negócios no setor e práticas comerciais pouco éticas, fazem os mercados menores virarem o armazém do seu Albano. Logo, para conseguir melhores preços, o consumidor é obrigado a procurar as redes mais capitalizadas e os grandes e hipermercados. A partir daí, se completa o ciclo de transformação na minha vida, quando o ato de fazer compras, antes um prazer buliçoso de esbanjar dinheiro nas lojinhas, se transformou em uma obrigação tediosa, estressante e por vezes perigosas. Em casos extremos pode ser até letal. No dia das eleições de 2022, um frigorífico de propriedade de um cantor sertanejo bolsonarista ofereceu picanha a um preço simbólico para compradores vestidos com a camisa da CBF, a confusão foi tamanha que resultou em uma morte. Alguém aí já foi ao aniversário do Guanabara? Eu não, mas já vi na televisão, horrorizado, a expectativa de uma vantagem econômica, por medíocre que seja, com uma propaganda eficiente, pode criar um frenesi incontrolável entre consumidores, que ávidos por suplantar os demais travam verdadeiras batalhas, como trogloditas disputando um quinhão maior do mamute.
Deixando de lado esses momentos extremos, em que o leitor mais avisado já sabe o que vai encontrar, vamos refletir um pouco sobre os incômodos e percalços que uma simples ida às compras pode trazer. O primeiro tributo quem cobra é Cronos, o senhor do tempo. Reserve horas, quando não o dia inteiro para a expedição, nem sempre o centro de consumo está perto de casa, é muito comum representar uma viagem de vários quilômetros e pode significar até mesmo a ida a mais de um estabelecimento, na ida e especialmente na volta, com a carga, só queimando gasolina, no veículo próprio ou alugado, com custo econômico, ambiental e urbano. Fila, antigamente, que eu me lembre, era só quando tinha racionamento. Para quem não sabe, “a Redentora de 64”enfiou um monte de racionamentos pela goela do povo, um era do leite, fazia fila na padaria e a quantidade era limitada, mas no geral você ficava poucos minutos para ser atendido no comércio. Agora não, além da fila no caixa, tem fila nos laticínios, fila na padaria, no açougue, na peixaria. Recomendo evitar os horários e dias de maior movimento, e quem puder, é bom levar uma equipe de familiares treinados para se dividir na missão.
O supermercado no fundo é um ambiente hostil, você se vê cercado de gôndolas e prateleiras minuciosamente preparadas por especialistas para ludibriá-lo. É preciso muita pertinácia e uma escolaridade superior à média do nosso povo, para se localizar direito no cipoal de produtos e embalagens com diversos pesos e apresentações, é vital ter muito cuidado para não tomar prejuízo, e a calculadora virou acessório indispensável. Eu recorri a um professor de matemática e formando em ciências atuariais, para obter umas dicas de como evitar ser tosquiado ao comprar minha comidinha. Esses caras são nojentos e respondem logo com uma equação com x e y, para provar que você é um bocó que não viu o óbvio, como, por exemplo, dividir o peso pelo preço para saber o preço por grama do biscoito e comparar qual a marca com melhor preço, mesmo que as embalagens venham com pesos diversos. Mas o supermercado e a indústria de alimentos sabem que o número de matemáticos que vão aparecer no supermercado é pequeno, então deitam e rolam: capricham na programação visual, estudam a disposição dos produtos pelas gôndolas e corredores; tem sempre um locutor empurrando os produtos a que querem dar saída. O consumidor vai encontrar uma série de armadilhas para aliviar o seu bolso, mas o mais importante é não cair na mais perigosa de todas, levar as crianças às compras.
É covardia! Em algumas sociedades há limites rígidos regulando a publicidade em seus efeitos sobre crianças e jovens, mas aqui vale tudo, veja lá se considerações sobre a psicologia infantil iriam dificultar de alguma forma os negócios, claro que não, o importante na economia neoliberal é o lucro máximo. Aquele produto que tem a figura do personagem queridinho das crianças é muito mais caro que os similares e fica em uma prateleira bem na altura do pequeno, provavelmente abaixo de produtos que você precisa comprar. Quem nunca viu pais desesperados tentando conter a ânsia de seus filhos em pegar todos aqueles pacotes coloridos das prateleiras? Todo chefe de família sabe que ir com as crianças ao mercado implica em um acréscimo no desembolso.
Muito bem, você fez o seu dever de casa direitinho: levou uma lista criteriosamente elaborada para evitar compras de impulso, deixou as crianças em casa, usou a calculadora para descobrir as melhores condições e, uma vez concluída a hercúlea tarefa, adquiridos todos os itens desejados, após a volta para casa com toda a carga, finalmente o descanso! Qual nada, chegou a hora de acondicionar todos os produtos e embalá-los apropriadamente para estocagem. Encher o congelador ou o freezer (que vai queimar energia o mês inteirinho), as gavetas de verduras e legumes, a lavanderia, a despensa, colocar tudo nos potinhos e saquinhos adequados. Um processo que também pode ser demorado e complexo, que no final deixa uma montanha de embalagens a serem descartadas, enchendo de lixo a nossa vida.
Tudo muito moderno mesmo, não é? As pessoas não têm mais que lidar com o dono do armazém, o açougueiro e o peixeiro. O abastecimento das famílias, que era feito por um conjunto de pequenos empresários e prestadores de serviço, agora é feito por grandes empresas que movimentam toneladas de mercadorias, abaixando os custos para o consumidor (é a nossa firme esperança). Você não conhece mais o dono do negócio, é atendido por funcionários que ocupam alguns dos piores postos do mercado de trabalho, e as responsabilidades quanto ao atendimento são diluídas em uma cadeia de gerentes de firmas poderosas, que podem lidar com a fiscalização em uma posição de força.
Não estou aqui trazendo o leitor para o “varandão da saudade”, a ridícula evocação dos bons tempos que não voltam mais (nos quais nem tudo era tão bom assim), mas sim para discutir o modelo de negócios para o abastecimento de nossas cidades. É comprovadamente possível trazer para os centros urbanos mercadorias diretamente dos produtores rurais, podemos dar como exemplo a exitosa experiência do MST, é claro que feirinhas agroecológicas não alcançam escala para responder pelo abastecimento de megalópoles, mas mudanças culturais são imperiosas! Aonde vai nos levar a manutenção desse padrão de consumo, de qualidade dos produtos, de geração de resíduos, de relações interpessoais? É saudável um modelo de negócios que mantém seguranças truculentos e cárceres privados para atender certos clientes?
O seu Manoel do açougue e o seu Albano da venda tremiam de medo e tinham pesadelos com a Lei Delegada nº 4 de João Goulart, já os grandes capitalistas que controlam o comércio vivem no paraíso, blindados por exércitos de contadores e advogados, podem jogar golfe em seu clube. mesmo devendo bilhões ao Estado. O poder econômico compra o poder político e a fiscalização para com grandes empresas é mais parcimoniosa. A lógica do lucro máximo é implacável, funcionários e consumidores são envolvidos em uma dança frenética, com o ritmo dado pela banda do patrão, enquanto os políticos assistem ao espetáculo banqueteando-se com as migalhas que caem da mesa dos bilionários.
É bobagem pensar em voltar ao passado, porém bobagem maior ainda é achar que não pode construir um futuro diferente, é um direito da cidadania almejar à construção de estruturas humanizadas e ecologicamente sustentáveis para os diversos ramos da vida social e econômica, mais que um direito, é um dever para com as gerações futuras lutar por elas. Ao funcionário sujeito ao sistema 6x1 de trabalho, ao entregador reduzido ao subemprego, aos consumidores mantidos isolados em uma relação com grandes corporações, questionar o poder do grande capital pode parecer impossível, mas eu trago comigo a certeza que o maior pavor desses magnatas poderosos é que o povo descubra que isso é possível.
*Eduardo Papa - Colunista, professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)
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