Religiões de matriz africana são exemplo de respeito e acolhimento
Nesse artigo do professor, escritor e babalorixá, Pai Márcio de Jagun, ele explica como as religiões de matriz africanas sempre abriram os braços para todos
Axé sem preconceito
As religiões afro-brasileiras foram as primeiras a admitir sacerdotes e sacerdotisas homossexuais no Brasil. O que realmente importa é o caráter (iwá) - conjunto de práticas que leva em consideração as virtudes, a relação respeitosa com o sagrado e com a sociedade.
No ambiente dos Terreiros, a orientação sexual não é critério para julgar a espiritualidade de quem quer que seja.
Este princípio decorre de vários fatores. O primeiro deles, diz respeito à relação com a natureza. Nas matrizes africanas, notadamente na cultura iorubá, a espécie humana não se autoproclama a mais importante, nem dominante. Por esta razão, percebe e se relaciona com os outros seres que habitam esse mundo de forma ímpar, em uma relação horizontalizada, onde todos possuem o mesmo grau de importância. Logo, vegetais, animais, minerais e hominais, estão no mesmo patamar. Por isso, consegue enxergar o sagrado em uma árvore, como Iroko; ou em um animal, como ocorre com Oxumarê.
A natureza não é hierarquizada pelos seres, nem pelo sexo.
Embora a estrutura sócio-administrativa ioruba seja fulcrada no homem, não se pode comparar o lugar ocupado pela mulher em relação às sociedades ocidentais, como ressalta a escritora nigeriana Oyèrónkẹ Oyewùmí.
Para os iorubás, todo corpo humano possui a energia de ambos os sexos. A parte direita (apá otun) concentra a energia masculina e parte esquerda (apá osí), contém a feminina.
Nos Candomblés, os postos organizacionais e as tarefas rituais são designadas conforme a matéria-massa preponderante na pessoa. Assim, um trabalho de limpeza espiritual tende a ser feito por alguém de Oya (Orixá incumbida de encaminhar os espíritos); assim como um procedimento de cura, por alguém de Omolu (Orixá que rege a saúde). Sem rótulos, sem amarras. A orientação sexual não importa. Não é relevante em tal avaliação.
Os iorubas compreendem as forças emanadas, a partir das expressões primordiais da natureza: água (omi), ar (afefé), fogo (inã) e terra (ilé). Os dois primeiros são femininos e os outros, masculinos.
Os deuses (orixás), as folhas (ewê), os destinos (odu), são também percebidos a partir de sua relação energética com as substâncias originais.
Interessante observar, que existem divindades que se associam a mais de um elemento, como Oxalá (ar e água), Oxumarê (ar e água), Logunedé (terra e água). Esta duplicidade, no entanto, não lhes impõe binarismos, nem preconceitos.
No mito da gênese ioruba, o mundo em que vivemos (aiyê) teria sido criado por Oduduwá e os seres que nele habitam, por Obatalá. Estes, formariam um par criacional homem-homem, o que chocou os primeiros missionários cristãos que se depararam com esse mito na África. Não conformado, Padre Labat feminilizou Oduduwá. Essa distorção, que induziria a erro várias gerações, apenas seria desfeita por Pierre Verger, já em meados do século XX. O fato é que a sexualidade, o gênero e a orientação sexual de Obatalá ou de Oduduwá não foram fatores relevantes à tarefa cosmogônica que lhes fora legada pelo próprio Criador (Olorun).
É preciso um olhar descolonizado para compreender outros sistemas culturais. A ideia hegemônica ocidental nos ofusca a percepção sobre a verdadeira importância das coisas e dos seres, impondo critérios, pechas, valores, conceitos e preconceitos. A diversidade é parte da natureza. Acolhimento e respeito, são exemplos que os Terreiros (Casas de Axé), nos ensinam e oferecem.
Pai Márcio de Jagun
Márcio de Jagun é Bàbálórìsà do Ilé Àse Àiyé Obalúwáiyé, advogado, escritor, professor e consultor em cultura ioruba no Programa de Estudos e Pesquisas das Religiões (PROEPER/UERJ); professor de cultura e idioma ioruba no Programa de Letras Estrangeiras Modernas (PROLEM/UFF); membro do Conselho Estadual de Defesa e Promoção da Liberdade Religiosa; pesquisador responsável pelo projeto de inclusão do idioma ioruba no Inventário Nacional de Diversidade Linguística (INDL) junto ao IPHAN; proponente da lei que tombou o idioma ioruba praticado nas religiões afro brasileiras como patrimônio imaterial do Estado do Rio de Janeiro.
É conferencista, articulista e autor dos seguintes livros: Orí - A Cabeça como Divindade, Yorùbá – Vocabulário Temático do Candomblé, Odù – os Iorubas e o Destino. No ano de 2000 começou a militar no combate à intolerância religiosa e contra o clientelismo religioso, atuação que mantém até hoje. Foi um dos fundadores da Associação Nacional de Mídia Afro – ANMA.
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