União Europeia dá passo histórico e determina reconhecimento de casamentos homoafetivos realizados no exterior
- Ronaldo Piber
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*Por Ronaldo Piber
“Os direitos do ser humano, por mais fundamentais que sejam, são históricos: nascem em certas circunstâncias, oriundos de lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”
Bobbio, A Era dos Direitos
Os direitos nunca chegam prontos. Eles são, como lembra Bobbio, conquistas acumuladas em camadas, arrancadas do tempo por meio de disputas sociais, políticas e culturais. A decisão mais recente do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) é a materialização viva desse processo histórico: o bloco determinou que todos os países membros devem reconhecer casamentos homoafetivos celebrados legalmente em outros países, mesmo quando suas legislações internas se recusam a admitir esse tipo de união.
Trata-se de uma decisão que ultrapassa o campo jurídico. É um gesto civilizatório, uma afirmação de valores que estruturam a própria ideia de Europa: liberdade, dignidade, igualdade. É também um freio às investidas de governos cada vez mais conservadores que tentam usar o direito como arma de exclusão.
O caso que desencadeou a decisão — e o que ele representa
A história começa com um casal polonês que se casou na Alemanha, onde o matrimônio igualitário é plenamente reconhecido. Ao retornar à Polônia, o Estado se recusou a registrar o casamento, sob o argumento de que a legislação nacional não contempla uniões entre pessoas do mesmo sexo. A mensagem subliminar era cruel: aquilo que vocês construíram fora daqui, aqui não existe.
Essa dinâmica jurídica expõe uma política antiga de muitos Estados: produzir ausência, legislar para tornar invisível o que existe de fato.
A decisão do TJUE rompe com esse padrão e afirma que a livre circulação de pessoas — um dos pilares da União Europeia — seria mera ficção se, ao atravessar uma fronteira, uma família pudesse ser dissolvida pelo ato administrativo de um cartório.
É justamente esse ponto que conecta o caso à reflexão de Bobbio: direitos surgem da necessidade de enfrentar práticas injustas, e sua consolidação exige vigilância constante.
Quando o direito se recusa a apagar famílias
O Tribunal europeu deixa claro que negar o registro de um casamento homoafetivo realizado no exterior viola:
o direito à vida privada e familiar;
a liberdade de circulação;
o princípio da não discriminação;
a própria lógica de cidadania europeia.
A decisão não força países conservadores a aprovar o casamento igualitário internamente — e talvez seja justamente essa nuance que a torna tão poderosa. Ela não interfere na soberania legislativa, mas impõe um limite à arbitrariedade estatal: ainda que o país não queira avançar, ele não pode retroceder ou negar a existência de pessoas casadas legalmente em outra parte do bloco.
É a Europa desenhando um perímetro mínimo de dignidade. Um chão firme contra retrocessos.
A geopolítica da exclusão e o alcance da decisão
Estados como Polônia, Romênia, Bulgária e Eslováquia têm sido palco de movimentos políticos que transformam a pauta LGBTQIAPN+ em arma eleitoral. Entre campanhas nacionalistas, retórica anti-gênero e perseguição institucionalizada, muitas pessoas LGBTQIAPN+ vivem sob clima de medo, invisibilidade e cerceamento de direitos básicos.
O TJUE envia, assim, um recado inequívoco:
há limites para o uso da moralidade estatal como justificativa de exclusão.
Essa decisão também fortalece tribunais locais, organizações de direitos humanos e movimentos civis que lutam contra legislações regressivas. Serve de base jurídica para proteger casais, filhos e famílias que até então viviam em zonas de incerteza.
O significado político, social e simbólico — o que realmente está em jogo
A decisão tem efeitos que ultrapassam a letra fria da lei:
Reforça a ideia de que famílias homoafetivas são famílias plenas, dotadas de direitos, deveres, vínculos e proteção.
Envia mensagem forte contra governos que tentam transformar direitos humanos em moeda de troca política.
Estabelece novo padrão de exigência democrática, em que a dignidade humana é inegociável.
Protege crianças, que muitas vezes ficam em situação de insegurança jurídica quando seus pais não são reconhecidos como tais.
É simbólico porque desmonta a estratégia de exclusão pela burocracia — a forma mais silenciosa e eficiente de violência estatal.
E o Brasil? O reflexo e o alerta
O Brasil reconhece o casamento homoafetivo desde 2011, mas a decisão europeia nos obriga a refletir sobre nossa própria fragilidade institucional.
Direitos LGBTQIAPN+ no Brasil foram conquistados majoritariamente pelo Judiciário, não pelo Legislativo — o que significa que não há blindagem política absoluta. Sem leis específicas, avanços dependem da vontade e da estabilidade das instituições.
A lição europeia é clara: direitos precisam ser continuamente reafirmados, defendidos e materiais.
Também é um lembrete importante de que igualdade formal não basta. Ainda falta:
política pública robusta;
proteção a famílias LGBTQIAPN+ em escolas e serviços de saúde;
combate à violência;
acesso real à justiça;
educação inclusiva;
assistência estatal contra discriminação estrutural.
A Europa nos mostra que é possível avançar mesmo diante de forças regressivas — e que a proteção jurídica deve sempre acompanhar a realidade social.
Um capítulo luminoso da história dos direitos
O Tribunal de Justiça da União Europeia reafirma que o amor é também um fato jurídico, digno de registro, proteção e continuidade. Uma família não se desfaz ao atravessar uma fronteira. Direitos não evaporam ao cruzar um posto de imigração.
A decisão evoca Bobbio não apenas como citação, mas como realidade viva: direitos humanos são conquistas histórica e diariamente renovadas. E, quando governos tentam retroceder, a justiça pode — e deve — funcionar como o último bastião de humanidade.
É por isso que este momento entra para a história: é um dos raros episódios em que o Direito decide estar ao lado da vida real, das pessoas concretas, das famílias que existem independentemente da vontade dos Estados. Um gesto civilizatório. Um avanço histórico.
E um lembrete permanente de que a igualdade precisa ser inscrita na lei, vivida na sociedade e protegida pelo Estado — todos os dias.
*Ronaldo Piber é advogado e colunista do Pimenta Rosa

