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A ÓPERA BUFA DAS AUTOESCOLAS

  • Foto do escritor: Eduardo Papa*
    Eduardo Papa*
  • há 6 minutos
  • 4 min de leitura

O estranho caso do liberalismo cartorial brasileiro


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Estamos acostumados a ouvir o canto da sereia dos liberais: de que o Estado é um estorvo e corrupto por definição; que os funcionários públicos são parasitas, que sugam a riqueza produzida pelos contribuintes; que a regulamentação da economia atrasa o desenvolvimento, impedindo a livre ação da mão invisível do mercado, que de outra forma levaria a sociedade a um círculo virtuoso de desenvolvimento. Uma cantilena bolorenta e desgastada, repetida, sem comprovação prática, desde o século dezenove, que ganhou uns remendos, no debut do neoliberalismo com a parceria Reagan-Thatcher, nas últimas décadas do século vinte.

 

O terceiro milênio da nossa era começou com uma ofensiva furiosa do grande capital, liderado pelo setor financeiro, tendo as Bigtechs como ponta de lança, contra os sistemas de proteção social e regulação estatal. Todas as mídias disponíveis, agora contando com a força das redes sociais, passaram a trabalhar para enfraquecer os Estados Nacionais, em benefício do poder das grandes corporações. A onda neoliberal que se espalhou pelo mundo, chegou a tomar formas radicais e inusitadas como o movimento ANCAP, que reúne pessoas que se autodenominam anarcocapitalistas, cujo principal ícone é o presidente argentino, que,  com sua motosserra de mentirinha, caminha a passos largos para cumprir sua promessa de destruir o estado argentino.

 

O mote principal ainda é a velha e surrada liberdade, ideia geralmente tirada da prateleira para justificar a espoliação e opressão de um grupo mais fraco. É a liberdade para empregadores explorarem os trabalhadores ao máximo, a liberdade do mundo do trabalho capturado por APPs, em que o uberista ou o entregador podem desfrutar da liberdade de escolher quais as 12 ou 14 horas do dia em que vai ter que trabalhar para sobreviver. Ou a liberdade de investidores inescrupulosos para acumular riqueza poluindo e dilapidando o meio ambiente, em prejuízo da coletividade. No plano político a impostura se materializa na exigência de liberdade para mentir, difamar e corromper. Nada ilustra melhor a liberdade do neoliberalismo do que os comícios de Milei para as eleições dessa semana. O presidente tem discursado, para uma claque de apoiadores, sobre seu choque de liberdade, em eventos cercados por tropas de choque, e soldados que trabalham duro para conter os apupos e evitar pedradas da população faminta ao redor.

 

Aqui no Brasil, convivemos com uma idiossincrasia, nossos paladinos da luta pela liberdade defendiam um golpe de estado para implantar uma ditadura militar, parece ridículo! E é mesmo! Surfando na onda do bolsonarismo, uma grande quantidade de palhaços chegou ao Congresso Nacional para fazer companhia ao Tiririca, na representação mais medíocre da história do nosso parlamento. Composta por alguns indivíduos bizarros, que usaram os expedientes mais inusitados para granjear popularidade na internet. Lembremo-nos do ilustre deputado que alcançou notoriedade em um vídeo tutorial expondo como fazia sua depilação anal. Felizmente alguns já saíram, como aquele mal-educado ignorante que agora envergonha apenas os eleitores de Cuiabá.  

 

Essa coleção desajeitada e inculta de lacradores de internet, cujo ideário não passa de um conjunto de platitudes genéricas e adaptáveis as mais diversas situações, conveniente ao oportunismo que os caracteriza, no rol de tolices que defende, traz com destaque uma repulsa histérica à intervenção do estado na vida das pessoas.  Na verdade, o estado brasileiro guarda sim características patrimonialistas e uma burocracia excessiva e cartorial, sendo desejáveis medidas de simplificação e maior transparência na coisa pública, que felizmente vem sendo adotadas e aprimoradas, ao longo das últimas décadas, em vários setores da administração pública, podemos citar como grande exemplo o nosso vitorioso pix.

 

No contexto dessa virtuosa modernização do país, o governo apresentou uma proposta de legislação que modifica a forma de concessão da habilitação para conduzir veículos, trazendo uma simplificação e barateamento do processo, com a supressão da obrigatoriedade de aulas em autoescolas registradas. Uma medida extremamente popular, pois o atual sistema torna as autoescolas em verdadeiros cartórios, em um sistema perverso e insano, que obriga o candidato eventualmente reprovado a pagar por um novo curso para tentar a sorte em outro exame. Uma regra absurda, que sempre foi criticada por nove entre dez candidatos a obter o documento. Era de se esperar que a medida passasse pelo legislativo sem maiores dificuldades, com uma ou outra emenda, mas em sua essência a proposta agrada a maioria esmagadora da população. As autoescolas não serão extintas e vão continuar a prestar seus serviços, embora saindo da zona de conforto garantida pela obrigatoriedade de contratação de seus serviços, para poder receber um serviço do estado - a prova de habilitação.

 

Entretanto, para surpresa de zero pessoas, como a medida foi proposta pelo governo Lula, a banda de música dos deputados da bancada circense iniciou mais um espetáculo, destinado a aumentar a vergonha que a cidadania vem sentindo de seus representantes. Quem começou a palhaçada foi aquele deputado que usa a bandeira nacional como um sarongue sobre o paletó, recolhendo assinaturas e arregimentando apoio contra o projeto do governo. Já está consolidado na consciência popular, que esse congresso é inimigo do povo, que a maioria dos deputados está no bolso das bets, dos bancos e dos bilionários. Mas será que não é o bastante? Será que nem o varejinho do lobby das autoescolas vai ser dispensado?

 

O curioso é que justamente aqueles que vivem se apresentando como defensores da liberdade do cidadão, que dizem combater o controle do estado sobre a vida das pessoas, é que saem em defesa de um sistema arcaico e injusto, que funciona como um caça níquel, drenando recursos da sociedade sem qualquer tipo de necessidade de apresentar eficiência ou relevância. Beneficiadas por uma legislação arcaica, que torna quem deseja uma habilitação para dirigir em refém dessas empresas, as autoescolas são um negócio cartorial, que lembra as corporações de ofício dos burgos medievais.  

 

A proposta provavelmente será aprovada e a situação colherá os resultados de seu trabalho. A oposição também! Cegos pelo ódio e o despeito, que os leva a torpedear tudo o que de benéfico e generoso é proposto para o nosso povo, e trabalhando para destruir o que outros tentam construir, os bolsonaristas apenas passam o recibo de que nada realizaram para apresentar à população. Tenho a firme esperança de que o nível de nosso parlamento pode melhorar na próxima legislatura. Recuso-me a acreditar que, depois do espetáculo dantesco protagonizado por essa escumalha, a nação tenha que continuar aturando a ignorância, a grosseria e a virulência dessa gente horrível.


 

*Eduardo Papa - Colunista, professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)

 

 
 
 

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