Brasil: o paĆs da bola
- Eduardo Papa
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Por Eduardo Papa*

Ilustração de Felipe Mendes - @ocoletordehistorias
Escolhi o futebol como tema para a Ćŗltima parada de nossa viagem pela história recente do paĆs. Para mim Ć© mais um desafio, pois Ć© um assunto que nĆ£o domino o suficiente para discutir em suas minĆŗcias, mas a paixĆ£o nacional pelo esporte bretĆ£o Ć© tĆ£o grande e sua exposição na mĆdia tĆ£o dominante, que nĆ£o hĆ” sequer um brasileiro que nĆ£o possa se aventurar a discorrer sobre o fascinante mundo da bola.
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Lecionei para o ensino mĆ©dio por 42 anos, dei aulas para alunos de famĆlias muito pobres e muito ricas. Ć natural a curiosidade dos alunos por tudo na vida de seus mestres e, se hĆ” algum professor lendo esse artigo vai concordar comigo, uma pergunta que nunca falta logo no primeiro dia de aula Ć©: qual Ć© o seu time, professor? Se o profissional tambĆ©m for um torcedor apaixonado, a construção da empatia (positiva ou negativa) pode passar por aĆ, eu aproveitava a conversa por alguns minutos para ajudar na sondagem e seguia em frente, exceto nas turmas do terceiro ano do ensino mĆ©dio, cuja programação inclui a formação da sociedade industrial (sou professor de história). Em um momento da carreira me deu uma inspiração e fiz, durante essa conversa inicial, uma pergunta crucial, que permitiu a ligação imediata com matĆ©ria a estudar, e que desde logo adotei como tĆ©cnica pedagógica:
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Diga lĆ” quem sabe por que inventaram o futebol? O debate foi riquĆssimo, galvanizou a atenção de todos, e a resposta de grande eficĆ”cia para a compreensĆ£o do tema (Revolução Industrial na Inglaterra): foi porque antes da era industrial pobre trabalhava de segunda a segunda, ia Ć missa aos domingos e depois voltava Ć faina, refresco só nas festas do calendĆ”rio religioso. As fĆ”bricas, em torno das quais ocorreu acelerada urbanização e concentração demogrĆ”fica, param de produzir um dia na semana para manutenção, e surge a folga aos domingos, quando a massa trabalhadora estĆ” livre nas ruas, sem a supervisĆ£o da capatazia. Nesse momento a classe dominante comeƧa a se preocupar com o que fazem os operĆ”rios em seu tempo livre e a propor atividades alternativas Ć s prĆ”ticas consideradas perigosas e reprovĆ”veis, tais como grupos de estudo e reuniƵes sindicais, que surgiam em toda parte. Assim surgiu o futebol, mais ou menos ao mesmo tempo em que o BarĆ£o de Coubertin resgatava os jogos da antiguidade grega, criando as olimpĆadas modernas. Os operĆ”rios precisavam ser alfabetizados, e logo surgiram os primeiros jornais de grande circulação, e depois o rĆ”dio, estimulando o interesse e a paixĆ£o pelos jogos, que se transformaram em uma indĆŗstria, ou parte da vasta indĆŗstria do entretenimento, que oferece inĆŗmeras oportunidades e alternativas para distração das pessoas, e só faz crescer atĆ© hoje.
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O futebol chegou Ć s AmĆ©ricas atravĆ©s do Rio da Prata, e de lĆ” desembarcou no Brasil como um esporte de elite. Aqui no Rio, os primeiros clubes de footballĀ disputavam com as regatas o interesse da juventude de classe mĆ©dia, que nĆ£o precisava trabalhar para viver. Botafogo, Flamengo e Fluminense surgiram em bairros nobres da cidade e, em sua origem, discriminavam o Vasco da Gama, fundado por comerciantes portugueses, de composição mais popular. Assim como na Europa, a imprensa, principalmente o rĆ”dio, contribuiu para a popularização do esporte, criando rivalidades entre torcidas para animar sua audiĆŖncia, e o futebol caiu no gosto do povo. Nos anos dourados da nossa história, serviu como um elemento de elevação do orgulho nacional, após as primeiras conquistas de copas mundiais (1958 e 1962), sepultando aquilo que Nelson Rodrigues definia como complexo de vira-latas. Nos anos de chumbo, o futebol foi largamente utilizado pela ditadura como instrumento de propaganda, ganhando um impulso enorme com as transmissƵes pela TV. O futebol virou sem dĆŗvida o esporte nacional, uma paixĆ£o extrema para muitos brasileiros, em torno do qual gira uma estrutura econĆ“mica, que move bilhƵes no mundo inteiro e alcanƧou um elevado nĆvel de sofisticação e complexidade, inimaginĆ”vel no tempo em que DandĆ£o jogava no AndaraĆ.
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Agora nem tem mais Dandão, nem Didi, DodÓ, Pelé, Zico. Jogador agora tem nome de imperador romano ou cantor de bolero, é OtÔvio Augusto, Rodolfo Caio, etc. E não foram só os nomes a crescer, o mercado de trabalho aumentou de maneira exponencial e, muito embora a grande maioria dos atletas tenha rendimento modesto, os salÔrios dos grandes astros tornaram-se astronÓmicos. Compare o fim da carreira do Mané garrincha, gênio da raça brasileira, que encheu de orgulho a nação e acabou sem vintém, dependendo da Elza Soares para ter um fim de vida digno, com o fim de carreira de Neymar Júnior, um ex-jogador ainda em atividade, que não agregou nada ao Brasil, a não ser mÔ fama, e ficou milionÔrio.
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Desde que surgiu, a profissĆ£o de jogador de futebol mudou muito. A princĆpio chegavam aos clubes jĆ” homens feitos, com as mais diversas experiĆŖncias de vida, desde doutores como TostĆ£o e Afonsinho atĆ© pessoas extremamente simplórias jogavam o mesmo jogo. Hoje nĆ£o, com raras exceƧƵes, os atletas profissionais sĆ£o formados desde a infĆ¢ncia, e cada vez mais cedo, nos Centros de Treinamento dos clubes, onde sĆ£o enquadrados na cultura dos āboleirosā, em que jogadores, treinadores e dirigentes obedecem a um script previamente ensaiado. A prova maior sĆ£o as entrevistas concedidas ao vivo. NĆ£o hĆ” mais um Dario Peito de AƧo para dizer que era a solucionĆ”ticaĀ para a problemĆ”tica do Flamengo, que com seu erro crasso dizia muito mais do que o enfadonho e monocórdio discurso padrĆ£o atual: āPrimeiramente agradeƧo a Deus...Seguindo a orientação do professor...Para honrar essa camisaāe um monte de clichĆŖs considerados adequados para o consumo do pĆŗblico pela mĆdia especializada.
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Pelos resultados que todos podem assistir nos estĆ”dios brasileiros, a formação desses jovens nesses CTs nĆ£o Ć© lĆ” grande coisa, o espĆrito esportivo ficou lĆ” no tempo do BarĆ£o de Coubertin. Hoje Ć© vale tudo por dinheiro. Atletas sĆ£o formados na lógica da vitória a qualquer custo, treinados para simular situaƧƵes de modo a ludibriar os Ć”rbitros, de cujas decisƵes sempre reclamam acintosamente. Um conhecido treinador paulista foi flagrado no intervalo de uma partida, orientando seus jogadores a cuspirem no rosto dos adversĆ”rios Ć guisa de provocação. A mĆ”xima do neoliberalismo do lucro acima de tudo impera no meio da bola, a formação dos atletas faz parte do negócio, e o dano colateral Ć© ver alguns dos ācriasā passando da seção de esportes para as pĆ”ginas policiais dos jornais. NĆ£o acompanho de perto, mas eu nĆ£o tenho visto lĆderes em campo com a estatura de um Sócrates ou um Juninho Pernambucano, por exemplo, quem costuma tomar a frente sĆ£o uns sujeitos mal-educados, de boca suja e destemperados, que nĆ£o raro vĆ£o Ć s vias de fato. Ć lamentĆ”vel, mas nĆ£o sĆ£o os jogadores os responsĆ”veis pela engrenagem, mesmo os de maior sucesso, sĆ£o meros peƵes no complicado tabuleiro de disputa dos seus próprios direitos federativos, um mercado volĆ”til, que movimenta grandes somas e que virou um paraĆso para a lavagem de dinheiro.
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O esporte em si mudou muito pouco, as regras sĆ£o basicamente as mesmas, a aplicação da tecnologia (VAR) em algo tĆ£o importante era inevitĆ”vel, o material esportivo e os uniformes melhoraram muito, mas, fora a polĆŖmica da grama artificial (que talvez nĆ£o agrade ao paladar de alguns), dentro das quatro linhas estĆ” tudo mais ou menos como antes, contudo em volta parece outro mundo. NĆ£o estou falando da estrutura de apoio dos clubes, departamentos mĆ©dicos evoluĆram como a medicina em geral, setores jurĆdicos e administrativos ganharam a sofisticação própria dos negócios de grande porte. A grande transformação nĆ£o ocorreu no palco, mas sim na platĆ©ia, o estĆ”dio que eu frequentei quando menino nĆ£o existe mais, o MaracanĆ£ estĆ” lĆ” no mesmo lugar, mas agora Ć© outra coisa.
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Antes do estĆ”dio virar arena, o MaracanĆ£ recebia mais de cem mil pagantes nos grandes jogos, eu mesmo fui a vĆ”rios. O futebol era um espetĆ”culo popular e barato, na geral militar fardado pagava um cruzeiro, uma ninharia. Recomendo dar uma olhada no Canal 100Ā no youtube (um Cinejornal especializado da dĆ©cada de sessenta) ou no filme Garrincha a Alegria do Povo,Ā que em diversas cenas mostram torcedores, para constatar que quem ia ao jogo era o povĆ£o. Eu lembro bem, multidƵes espremidas nas arquibancadas de cimento, explodindo em uma catarse de alegria na hora do gol, na maioria gente simples lavando a alma e encontrando como sublimar o sofrimento diĆ”rio. E com o povo pobre nĆ£o era esse horror de violĆŖncia que vemos hoje, aqui ou acolĆ” rolava um entrevero, resultado de alguns torcedores com Ć¢nimos exaltados no meio da multidĆ£o, mas nada parecido com o que vemos hoje. Esse negócio de bandidos armados marcando verdadeiras batalhas campais, que nĆ£o raro resultam em morte, era inimaginĆ”vel. E olha que a cerveja era vendida em garrafa nos bares, o pĆŗblico nĆ£o passava por revistas, circulavam ambulantes com todo tipo de material (eu adorava o amendoim torrado que vinha na lata com fogo aceso), nĆ£o tinha batalhĆ£o especializado, era seguranƧa zero. A princĆpio, os torcedores ficavam misturados na arquibancada, a partir do surgimento de uma charanga com as cores do Flamengo, inocentemente, os torcedores comeƧavam a se aglutinar em torno de torcidas organizadas, que mantinham uma batucada, confeccionavam faixas e bandeiras, organizavam viagens para acompanhar o time, etc. E deu no que deu!
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Os estĆ”dios agora sĆ£o ocupados por uma gente brancarana, capaz de pagar ingressos caros e consumir bebidas e lanches fornecidos somente por empresas credenciadas, vestidos com suas camisas oficiais. Os pobres, que sustentaram o crescimento do esporte garantindo gordas bilheterias, nĆ£o sĆ£o mais desejados dentro do estĆ”dio, mas nem por isso deixam de ser tosquiados pelo mercado da bola. As transmissƵes pela TV evoluĆram muito, mas os jogos de maior interesse nem sempre passam na TV aberta, o torcedor que nĆ£o pode ir ao estĆ”dio, nem pagar uma assinatura de TV fechada, vai ver seu time de coração como? Moleza, as operadoras de TV oferecem planos especiais para bares, que para atrair clientes aderem em massa, nos dias de jogos os estabelecimentos ficam lotados, para alegria dos proprietĆ”rios e de um dos maiores patrocinadores do esporte ā a indĆŗstria de bebidas. Bom gancho para deixar um pouco de lado a paixĆ£o do torcedor e esmiuƧar um pouco as entranhas do negócio.
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E que negócio! Vai longe o tempo em que os atacadistas da Rua do Acre fizeram uma vaquinha para construir o EstĆ”dio do Vasco da Gama, ou que banqueiro de bicho Castor de Andrade bancava o time do Bangu, agora Ć© coisa de gente grande no mundo inteiro! Imagina os ingleses, sempre cheios de pose, quando um Sheik lĆ” das arĆ”bias comprou um de seus times mais populares? O futebol virou um negócio bilionĆ”rio, que aqui no Brasil subiu muito de patamar quando o mordomo de vampiro (o que tomou o lugar da Dilma Roussef) liberou as bets. O capital meteu o pĆ© na porta, deixando no passado qualquer resquĆcio de amadorismo no esporte. Vejam o exemplo do Botafogo, estava falido, caindo pelas tabelas, foi comprado por um empresĆ”rio americano e em pouco tempo voltou ao topo, disputando e vencendo os principais campeonatos. A tendĆŖncia Ć© inexorĆ”vel, para horror dos mais ingĆŖnuos saudosistas, o poder do dinheiro serĆ” cada vez mais decisivo no esporte, como em tudo mais. E duas perguntas precisam ser respondidas para entender direitinho como isso estĆ” se desenvolvendo, quem controla e quem banca o negócio.
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Grande parte dos ācartolasā, dirigentes dos clubes e federaƧƵes, figura entre a escória da polĆtica nacional, muitos buscam mandatos parlamentares, apoiados pelos torcedores de seus clubes, para obter cobertura institucional para seus negócios ocultos. Quem nĆ£o se lembra do helicóptero de um parlamentar dirigente de clube apreendido com meia tonelada de cocaĆna? Tem cartola brasileiro cumprindo pena no exterior por lavagem de dinheiro, tem os que flertam com o golpismo, Ć© uma turma da pesada que comanda o espetĆ”culo, mas quem os patrocina? JĆ” falamos da indĆŗstria de bebidas, que responde por uma fatia importante da receita dos clubes e federaƧƵes, muito embora o Ć”lcool seja a droga que mais mata e adoece no mundo, a sociedade nĆ£o vĆŖ nenhuma estranheza que sua indĆŗstria patrocine o esporte (pelo menos a indĆŗstria do cigarro foi afastada). A falta de critĆ©rio Ć© tanta, que atĆ© a ācasa das primasā faz propaganda nos jogos. Recentemente, uma empresa que agencia encontros com acompanhantes (leia-se exploração do lenocĆnio) ostentava sua placa de publicidade nos jogos do brasileirĆ£o. Entretanto o mais absurdo foi a apropriação do esporte nacional dos brasileiros pelos cassinos virtuais, que se transformaram em um grave caso de saĆŗde pĆŗblica e ameaƧa a economia das famĆlias. Temer liberou as bets, no apagar das luzes de seu mandato, e Bolsonaro nada fez para sua regulamentação, o campo ficou livre para a mĆ”fia dos cassinos, que tomou conta do futebol, aproveitando a paixĆ£o nacional para escravizar pelo vĆcio do jogo um sem-nĆŗmero de brasileiros.
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O mais escandaloso Ć© que nĆ£o se ouve um pio na mĆdia corporativa, me causa engulhos quando vejo esse GalvĆ£o Bueno, liderando todo o jornalismo especializado, na apologia a jogatina. Lembro do JoĆ£o Saldanha, que quando convidado para ancorar a campanha de lanƧamento da loteria esportiva, recusou uma oferta milionĆ”ria da CEF, dizendo que nĆ£o ia fazer propaganda para um jogo que a banca tem mais de um milhĆ£o de chances de ganhar que o apostador. Passou o tempo de Garrinchas e Saldanhas, e o que mais me entristece Ć© quando vejo o entusiasmo de meu netinho de onze anos com o futebol, entretido com Ć”lbuns de figurinhas dos jogadores, acompanhando a campanha de seu clube do coração e da seleção brasileira, sem saber que o esporte que ama Ć© comandado por politiqueiros corruptos e patrocinado por bookmakers, vendedores de drogas e cafetƵes.
*Eduardo Papa - Colunista, professor, jornalista e artista plƔstico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)
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