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Do Stonewall ao “Orgulho Hetero”: como a extrema direita usa uma falsa simetria para atacar direitos LGBTQIA+

  • Foto do escritor: Ronaldo Piber
    Ronaldo Piber
  • há 7 minutos
  • 6 min de leitura

Cinco décadas após o levante que mudou a história das lutas LGBT, o Brasil se torna líder em projetos de lei que tentam instituir o “Dia do Orgulho Heterossexual” — uma reação política que transforma privilégios em vitimização e ameaça conquistas democráticas


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*Ronaldo Piber


Em junho de 1969, quando drag queens, travestis e jovens LGBT revidaram as violentas batidas policiais no bar Stonewall Inn, em Nova York, eles não imaginavam que, cinco décadas depois, suas vidas e suas lutas se tornariam símbolo global de resistência. Desde então, as paradas do orgulho LGBTQIA+ passaram a ocupar ruas, avenidas e calendários oficiais no mundo inteiro. No Brasil, no cinquentenário desse levante histórico, mais de 297 cidades realizaram paradas, reunindo milhões de pessoas em atos que misturam celebração, protesto e afirmação de existência.


Enquanto isso, em outra frente, movimentos conservadores, nacionalistas, religiosos e masculinistas organizaram uma contraofensiva. À medida que políticas de igualdade de gênero e direitos LGBTQIA+ avançaram, eles passaram a responder com estratégias que vão da tentativa de censurar debates sobre diversidade sexual nas escolas à proposição de leis que criminalizam publicidade com casais homoafetivos e invisibilizam pessoas trans. Dentro desse contexto, aparece um dos fenômenos mais reveladores da disputa política contemporânea: a tentativa de instituir um “Dia do Orgulho Heterossexual”.


Propagado como defesa da “maioria silenciosa” e como reação ao “excesso de direitos” de minorias, esse “dia” virou bandeira simbólica de grupos que veem a igualdade como uma ameaça e a diversidade como um perigo social. A questão central, porém, permanece: orgulho de quê, exatamente? E, mais importante, por que agora?


Orgulho LGBTQIA+ x “orgulho hetero”: o uso político de uma falsa simetria

O movimento LGBTQIA+ ocupa as ruas para reivindicar direitos negados, denunciar violências e afirmar dignidade. O orgulho LGBTQIA+ nasce como uma resposta histórica ao silenciamento, à perseguição policial, às prisões arbitrárias, ao tratamento psiquiátrico compulsório e às mortes que, até hoje, fazem do Brasil o país que mais assassina pessoas trans no mundo.


Já o chamado “orgulho heterossexual” surge de outra lógica: não como reação à opressão, mas como estratégia política. Em diversos países — do Chile à Hungria, da Espanha ao México — grupos conservadores têm organizado marchas e proposto leis para reafirmar “a ordem natural da família”, “os valores cristãos” e “o modo de vida heterossexual”. Em comum, há a tentativa de criar uma falsa equivalência: se existe um Dia do Orgulho LGBTQIA+, então deveria existir também um para heterossexuais.


Essa simetria é falsa por um motivo óbvio: heterossexuais não são perseguidos por serem heterossexuais. Nunca foram presos por isso. Nunca tiveram seus filhos retirados pelo Estado por isso. Nunca perderam emprego por isso. Nunca foram expulsos de casa por isso. Nunca tiveram sua identidade considerada patológica ou criminosa por isso.


A heterossexualidade é a norma social — e é justamente por isso que não precisa de um dia para ser celebrada. Criar um “orgulho hetero” é inverter a lógica do orgulho: transformar privilégio em pauta, hegemonia em vitimização e desigualdade estrutural em “liberdade de expressão”.


O Brasil e seus 17 projetos de “orgulho hetero”: quando a reação vira política de Estado

Em nenhum outro país democrático há tantos Projetos de Lei destinados a instituir o “Dia do Orgulho Heterossexual” quanto no Brasil. Até agora, foram identificados 17 PLs distribuídos entre Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. As propostas vêm de partidos que vão da centro-direita à extrema direita, passando por diferentes denominações religiosas e estilos de conservadorismo.


A data preferida é quase sempre a mesma: o terceiro domingo de dezembro, escolhida em 14 das 17 proposições. Outras alternativas — como 8 de dezembro, em Fortaleza — surgem de vez em quando, mas o simbolismo do terceiro domingo de dezembro se consolidou como a “resposta oficial” ao 28 de junho.


A primeira iniciativa brasileira surgiu em 2005, em São Paulo, proposta pelo vereador Carlos Apolinário. À época, a Câmara aprovou o projeto, e o prefeito Gilberto Kassab chegou a sinalizar que sancionaria a lei. Mas, diante da forte reação de movimentos sociais, juristas e da opinião pública, foi obrigado a vetá-lo para evitar uma crise institucional.


Depois disso, as propostas se multiplicaram. Eduardo Cunha apresentou um PL federal em 2011, arquivado por inconstitucionalidade. Outros parlamentares repetiram a fórmula — ora como gesto político, ora como provocação, ora como parte de estratégias articuladas com frentes religiosas e masculinistas.


A única cidade onde esse dia virou lei foi Arraial do Cabo (RJ), em 2011. Nenhuma outra capital, nenhum outro Estado e nenhum nível federal considerou adequado ou sensato aprovar a data.


E há um motivo para isso: quando analisamos as justificativas desses PLs, percebemos que não são iniciativas isoladas, mas parte de um projeto cultural e político maior.


Três pilares do discurso conservador: família tradicional, moral religiosa e a fantasia da heterossexualidade em perigo


Pesquisas que analisaram o conteúdo desses Projetos de Lei revelam três categorias discursivas que aparecem de forma repetitiva e estruturante:


1. Defesa da família tradicional

O primeiro eixo é a ideia de que a heterossexualidade é a única forma legítima de relação humana. Os PLs expressam a crença na complementaridade biológica e na criação divina, associando o “orgulho hetero” ao “papel natural do homem e da mulher”. Nessas narrativas, a família aparece como instituição ameaçada por “modernidades”, por “novas formas de família”, pela autonomia financeira das mulheres e, sobretudo, pelo avanço dos direitos LGBTQIA+.


Essa retórica parte do princípio de que qualquer reconhecimento de outras formas de família coloca em risco a estrutura social — uma visão que, além de ultrapassada, reforça desigualdades históricas e tenta reverter conquistas de equidade.


2. Defesa de valores morais e religiosos

A moral cristã é o alicerce mais visível desses PLs. As justificativas mencionam Deus, a Bíblia, a criação do homem e da mulher e a necessidade de preservar padrões éticos e tradicionais. A fé aparece não apenas como argumento espiritual, mas como fundamento jurídico — em afronta direta ao princípio constitucional da laicidade do Estado.


Trata-se de um esforço para transformar crença em norma, espiritualidade em direito e doutrina religiosa em lei. No centro dessa estratégia está a ideia de que políticas de igualdade ferem a liberdade religiosa, quando, na verdade, garantem a liberdade de todas as pessoas existirem.


3. A noção fantasiosa de “heterossexualidade em risco”

Talvez o eixo mais revelador seja o discurso que pinta heterossexuais como vítimas. Os PLs afirmam que políticas LGBTQIA+ criam privilégios, que existe “ditadura gay”, que defender a família virou “crime”, e que a criminalização da LGBTfobia poderia gerar “derramamento de sangue entre gays e heteros”.


É um retrato invertido da realidade. Num país onde pessoas LGBTQIA+ são assassinadas diariamente, onde a vida trans é constantemente silenciada e onde a violência motivada por ódio persiste, sugerir que heterossexuais estão sob ameaça é não apenas falacioso, mas perigoso.


É transformar a minoria vulnerável em opressora. É distorcer a luta por igualdade em tentativa de domínio. É criar inimigos imaginários para justificar projetos de poder muito concretos.


A “crise da masculinidade”: o pano de fundo que explica a reação

A discussão sobre o “orgulho hetero” não pode ser dissociada do que pesquisadores chamam de crise da masculinidade. À medida que mulheres conquistam autonomia econômica, ocupam o mercado de trabalho e contestam papéis tradicionais; à medida que pessoas LGBTQIA+ ganham visibilidade, direitos e espaços sociais; à medida que o modelo patriarcal perde força simbólica, muitos homens passam a sentir que sua identidade — construída historicamente sobre privilégios — está em declínio.


Esse sentimento de perda, de “castração simbólica”, de deslocamento social, é capturado por movimentos religiosos ultraconservadores, pela extrema direita e por subculturas masculinistas online — dos incels aos coaches de virilidade tóxica. Eles oferecem uma narrativa simples: “vocês perderam espaço porque alguém tomou”. E apontam responsáveis: feministas, pessoas trans, políticas de igualdade, educadores, a “ideologia de gênero”.


Nesse contexto, criar um “dia do orgulho hetero” não é apenas provocação. É estratégia. É ferramenta de mobilização emocional. É forma de reconectar homens inseguros com discursos de poder, controle e superioridade. Não por acaso, 16 dos 17 PLs foram apresentados por parlamentares homens.


Conclusão: orgulho é para quem luta para existir

As paradas LGBTQIA+ e o Dia do Orgulho não foram criados para exaltar orientações sexuais, mas para denunciar violências e afirmar dignidade. São respostas históricas a agressões, invisibilização e morte. São movimentos de resistência.


O “Dia do Orgulho Heterossexual”, ao contrário, nasce da tentativa de reafirmar hegemonias, estigmatizar minorias, militarizar a moral religiosa e recolocar o patriarcado no centro da vida social. É um movimento que distorce a ideia de orgulho — transformando-a em arma política — e que tenta congelar o tempo para impedir que a igualdade avance.


Num país onde pessoas LGBTQIA+ seguem sendo as maiores vítimas de violência, exclusão e assassinatos, celebrar “orgulho hetero” não é apenas desnecessário. É um insulto à história. É um projeto de poder. É uma forma de silenciar quem sempre lutou para sobreviver.


O único orgulho que precisa de calendário, de política pública e de visibilidade é aquele que nasce da luta por existir — e esse, definitivamente, não é o heterossexual.


*@ronaldopiber é advogado e colunista do Pimenta Rosa



 
 
 

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