Então é Natal, a festa cristã!
- Eduardo Papa*

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*Eduardo Papa
Minha formação acadêmica foi em história, o que cria um modelo de pensamento analítico muito peculiar, o de vislumbrar todas as coisas como em processo de transformação ao longo do tempo, e buscar no passado associações que possibilitem especular sobre o futuro. Portanto, ao falar sobre a festa cristã que se aproxima, vou começar discutindo a sua origem.
No século III, quando o cristianismo se tornou hegemônico no Império Romano, a burocracia eclesiástica empenhou-se com afinco em apagar da memória do povo as celebrações pagãs. Entretanto, algumas festas eram tão populares e estavam tão arraigadas nas tradições populares que não puderam ser extintas, como o nosso querido carnaval, cujo encerramento em cinzas marca o início da quaresma. Um dos exemplos mais emblemáticos dessa prática foi passarem a celebrar o nascimento do nazareno em 25 de dezembro. Ora a chance do Cristo ter nascido exatamente nessa data é de uma em 365, nenhum bispo, por mais estudioso que fosse das origens do cristianismo, podia afirmar isso com segurança. O que de fato ocorreu foi que nessa data era celebrada uma das festas mais importantes no calendário dos festejos pagãos, uma data comemorada pelo povo com grande alegria, danças e banquetes, que os sisudos clérigos da época não ousaram proibir, passaram então a criar dentro de sua mitologia as alegorias que chegaram até nossos dias, com o nascimento do messias em um curral, os reis magos trazendo presentes, e tudo mais. A Saturnália (culto ao Deus Sol no solstício de inverno) passou a marcar a comemoração do nascimento de Cristo, e foi ao longo do tempo assumindo o caráter da festa que conhecemos hoje.
Durante a Idade Média, o Natal era uma festa de segunda grandeza, na sociedade teológica não era o nascimento, mas sim o martírio, a morte e ressurreição do messias o ponto alto das comemorações, mas o Natal sobreviveu como uma festa de fartura e alegria em um calendário de novenas, jejuns e autoflagelações, para na Renascença ganhar um novo impulso. A Era Moderna trouxe a incorporação da figura de Santa Klaus, oriunda do folclore nórdico-eslavo, que virou a figura quase universal do Papai Noel, e o Natal passou a assumir o caráter que conhecemos hoje, disseminado por toda parte com a nova e revolucionária invenção de Guttenberg, transformou-se na festa das famílias e das crianças.
A Revolução Industrial, a expansão pelo mundo e a consolidação do capitalismo como o sistema dominante, e a formação da sociedade de consumo, influenciaram decisivamente o caráter do Natal. Queiram ou não as pessoas religiosas e tradicionalistas, o Natal, como tudo em nossa sociedade, passou pelo crescimento de sua dimensão econômica e comercial. A troca de presentes foi colocada no centro do evento, a Missa do Galo, o presépio, a árvore e o próprio aniversariante, tornam-se coadjuvantes do ato principal do evento, que passa a ser comprar os presentes. Desde as grandes corporações até microempresas, todos desenvolvem estratégias e planos comerciais para o Natal. Surgiu uma robusta estrutura econômica em torno do evento: décimo terceiro salário, campanhas publicitárias agressivas, mecanismos de oferta de crédito, e todo um aparato econômico importante que passa a gravitar a cada final de ano em torno da data. O Natal deixou de ser uma festa exclusiva dos cristãos, judeus, budistas, muçulmanos, umbandistas e até ateus, são envolvidos no mesmo frenesi de consumo que toma conta da sociedade no final do ano.
Essa evidente que a deturpação do sentido espiritual da festa, expressa a decadência moral e a corrupção dos valores originais do cristianismo na sociedade atual. Hoje vemos religiosos que teimam em preservar os princípios constitutivos do cristianismo dando murro em ponta de faca, vejamos o exemplo emblemático do padre Júlio Lancelloti, censurado e manietado pela cúpula da Igreja Católica, evidentemente por seu trabalho social voltado para os mais pobres incomodar a parte privilegiada da Urbis Paulistana. Mais escandaloso ainda é no que se transformou a maior parte das Igrejas Evangélicas, que surgidas como um movimento “protestante” contra a corrupção eclesiástica, hoje superam a matriz papista em comportamento reacionário e perverso para com seus seguidores. Figuras abomináveis como Edir Macêdo, Silas Malafaia e outros escroques do mesmo quilate, criaram aberrações como a Teologia do Domínio e o crente ostentação, em Igrejas para as quais o objetivo de arrecadar se sobrepõe a uma pretensa missão evangelizadora, que no fundo objetiva aumentar o rebanho de contribuintes para a riqueza dessas estruturas religiosas.
Na sociedade neoliberal, materialista, o novo objeto de adoração é a riqueza, cuja acumulação substitui o comportamento piedoso como medida de aceitação e reconhecimento por Deus, qual será o destino do Natal? O que será da festa das crianças, transformadas em adultos cada vez mais precocemente? Da festa das famílias, quando a família nuclear tradicional parece destinada à extinção? Da festa do congraçamento, com as pessoas cada vez mais isoladas e atomizadas por uma tecnologia, que pretensamente surgiu para aproximá-las? Será que acontecerá o mesmo que com o prosaico cartão de Natal? Substituído por mensagens eletrônicas padronizadas e automaticamente distribuídas para os endereços do seu mailing?
Assim como o velho cartão de Natal, com sua materialidade, transportando pelo correio uma mensagem grafada de próprio punho para o destinatário, está sendo substituído por uma nova linguagem, com signos e números condensados e miniaturizados em circuitos eletrônicos, o espírito do Natal também há de se reciclar. Quem será o provedor da felicidade a ocupar o lugar do Papai Noel? Ninguém sabe, mas provavelmente virá em fibra ótica, singrando uma nuvem bem diferente daquela que o velho Santa Klaus atravessava em seu trenó conduzido por renas aladas. Temo que modelos matemáticos cibernéticos ocupem em nosso mundo interior o lugar da fantasia e da imaginação, e a lógica do individualismo e da cupidez ocupem o lugar da afetividade e do amor.
*Eduardo Papa - Colunista, professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)





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