Homeschooling
- Eduardo Papa*

- 12 de out.
- 6 min de leitura

*Eduardo Papa
Foi aprovado na Câmara dos deputados, e tramita no Senado Federal, o Projeto de Lei 1338, que dispõe sobre a regulamentação da educação domiciliar, na qual os pais assumem a responsabilidade sobre a formação acadêmica de seus filhos, dispensando-os da frequência escolar. Uma prática que tem sido muito adotada nos EUA e surge com grande expressão em comunidades e famílias ultraconservadoras, que enxergam na escola uma abertura para que seus filhos sejam expostos a influências, que contrariem os seus princípios políticos e filosóficos.
O advento da internet facilitou sobremaneira o desenvolvimento dessa prática, fornecendo os materiais e a orientação pedagógica, que possibilitam aos pais (desde que suficientemente instruídos) cumprir a função exercida pela escola. Na verdade, trata-se de uma alternativa válida, e por vezes indispensável, para famílias e comunidades que vivem em regiões muito distantes, em virtual isolamento, podendo constituir-se em uma opção interessante em um país de dimensões continentais e áreas remotas e pouco povoadas. Porém, não foi essa a causa que moveu o legislador a apresentar a proposta.
Não foi a distância física de unidades escolares, mas a distância ideológica dos princípios que orientam a educação brasileira, que levou muitas pessoas a buscarem essa alternativa, mesmo em centros urbanos em que escolas são disponíveis e acessíveis. Desde que a filosofia de Olavo de Carvalho se espalhou pelo Brasil, que muita gente assimilou a sua “crítica ao politicamente correto”. Gente com saudades de regozijar-se com anedotas racistas, por exemplo, começou a questionar os princípios inclusivos estabelecidos para nortear a educação brasileira, afinal se o seu guru fugiu da escola na quinta série do primário, e consegue construir um ideário na medida para que se identifiquem, qual o valor de uma instituição que questiona sua forma de encarar o mundo?
A multiplicação de casos de racismo nas escolas, mesmo entre crianças muito pequenas, comprova o fato de que a criança reproduz na escola o que aprende em casa, e uma interpretação enviesada, maliciosa mesmo, transforma a obrigação dos mestres em difundir princípios inclusivos e democráticos, consagrados em nossa constituição, na formação de seus alunos, em um abuso contra a liberdade de discriminar e ofender grupos minoritários e desfavorecidos na sociedade. A criança, e depois o jovem, criado em um ambiente eivado de racismo, homofobia e xenofobia, vai ter problemas na escola, que é estruturada para combater esses comportamentos. Não é por outro motivo que a extrema direita defende com unhas e dentes a excrescência das escolas cívico militares, além do ensino domiciliar, são formas de blindar as novas gerações de influências que contrariem os preconceitos e o ódio de que se alimenta.
Acusam, de maneira recorrente, nossos professores de doutrinadores. Governadores reacionários, além de manterem a classe à míngua, criaram corregedorias para investigar e punir nossos mestres por fazerem o seu trabalho. Nosso sindicato, aqui do Rio, defende diversos colegas respondendo a inquéritos administrativos e sindicâncias, que são claramente perseguição ideológica. O fascismo (que aqui no Brasil adotou o apelido de bolsonarismo) prospera nas trevas, e rejeita qualquer pensamento que tenha o condão de libertar as pessoas dos preconceitos e recalques, que perpetuam sua fragilidade e desunião. A partir daí, o homeschooling surge como uma opção para as famílias conservadoras, para afastar seus filhos desse ambiente de devassidão, com banheiros unissex, professoras de sovaco cabeludo, mamadeiras de piroca e etc.
Sendo devidamente elucidada a origem da proposta, vamos especular um pouco sobre como ela se daria na prática, e quais suas consequências para as crianças e a sociedade. Em primeiro lugar, mesmo que os pais tenham toda a disponibilidade de tempo necessária, e uma sólida formação acadêmica, jamais poderiam substituir uma equipe multidisciplinar de profissionais da educação. A inteligência artificial e conteúdos disponíveis na internet, não suprem a ausência de profissionais treinados para compreender os educandos e propor estratégias pedagógicas adequadas. Conforme o avanço na idade, cresce também a variedade e a complexidade das matérias a serem estudadas, pode uma família entregar um jovem formado no ensino médio com proficiência? Como substituir uns nove professores regentes, com o apoio de coordenadores, orientadores educacionais e psicólogos? E ainda que os pais consigam enfrentar essa tarefa hercúlea, como se dará a socialização da criança?
Pessoas da minha geração brincavam com os vizinhos na infância, hoje não. A maioria das crianças em nossas cidades, vive encapsulada em ambientes muito restritos e supervisionados de perto por pais e responsáveis. Apenas os pequenos miseráveis perambulam livres em suas comunidades, expulsos pela exiguidade de espaço nos cubículos em que vivem. As escolas, com horários de atendimento cada vez mais expandidos, são praticamente o único espaço de convívio entre crianças e jovens da mesma idade. Qual seria o efeito psicológico na formação de uma criança, causado pelo afastamento do convívio com pessoas da mesma idade, de fora do ambiente familiar?
Em casos de normalidade, apenas prejuízos pedagógicos, talvez a acentuação de alguma timidez, contratempos inevitáveis, mas que justificam a adoção dessa modalidade de educação, admitida por países em que parte da população vive em condições de isolamento, como nas vastidões geladas do Canadá e da Finlândia, entre outros. Porém, a adoção do ensino domiciliar, indiscriminadamente, pode ser uma pena terrível imposta a crianças que nascem em famílias doentes. Uma desgraça pessoal, com potencial de gerar uma tragédia social. Em 25 de novembro de 2022, na cidade de Aracruz (ES), um jovem de 16 anos, aproveitou a ausência da família, pegou a arma do pai, foi a duas escolas perto de casa, e baleou 16 pessoas, das quais quatro morreram. O pai, tenente da PM, era preocupado com a educação do filho, tendo inclusive o presenteado com uma edição do “Mein Kampf” de Adolf Hitler. Não posso afirmar que é o caso do tal tenente, mas esse negócio de homeschooling pode ser o caminho para a formação de “monstrinhos”.
Imagine o dano que esses patriotarios mais idiotizados não causam a seus filhos! Calcule então se não tivesse a escola para abrir outras janelas para essas crianças e jovens! Mesmo quando a escola é um nicho de manutenção do reacionarismo, como algumas instituições privadas, e mesmo escolas públicas de comunidades interioranas, nas regiões mais conservadoras do país, sempre haverá ali um contrapeso, uma mediação. No mínimo, a lei do nosso país garante, ao professor que se proponha a trabalhar direito, a liberdade de exercer seu trabalho em consonância com os preceitos constitucionais, ainda que tenha que matar um leão por dia para fazê-lo.
O homeschooling aqui no Brasil, assume ares de mais um round na luta dos campeões da liberdade individual, contra o Estado malvadão. A politização do tema é inevitável, e não há outro lado decente com o qual se alinhar, senão o das crianças brasileiras, que já estão em um mato sem cachorro, sujeitas a índices de violência inaceitáveis, inclusive dentro de seus lares, e vão poder ser encarceradas. Não é inverossímil um cenário em que filhos de bilionários sejam mantidos em torres de marfim, recebendo professores em casa, enquanto crianças na periferia, desobrigadas de frequentar escolas, são escravizadas. Quão perigosa é a infância de hoje, assediada de maneira invasiva e brutal no ciberespaço, conduzida a padrões de vida adulta cada vez mais precocemente, e com a vida familiar cada vez mais destroçada pelo modelo competitivo neoliberal.
A angústia e os percalços, que muitas de nossas crianças enfrentam, não podem ser resolvidos pelo seu isolamento em suas estruturas familiares, que muitas das vezes fazem parte do problema. Penso eu, que a nossa sociedade deve buscar soluções cada vez mais comunitárias para lidar com a infância. Boa parte do sucesso das igrejas neopentecostais reside justamente nisso, oferecer as pessoas alternativas coletivas viáveis para lidar com a educação dos filhos, não é sem motivo o empenho dessas igrejas em disputar vagas nos Conselhos Tutelares. A mim, esse ensino domiciliar parece um enorme retrocesso. No final do séc. XIX, os principais países europeus instituíram serviços de instrução pública, que logo foram copiados por todo o mundo. A escola foi a solução mais apropriada encontrada pelas sociedades modernas para formar as novas gerações, e o fracasso ou sucesso das instituições de ensino, me parece uma boa medida para medir o grau de desenvolvimento de uma formação social.
O fascismo brasileiro sempre viu a educação das pessoas pobres com maus olhos, não é por acaso que Paulo Freire em vida foi perseguido e exilado, e após a morte tem sua memória enxovalhada de maneira continuada pela extrema direita. A escola pública no Brasil está sob forte ataque: setores poderosos do capital fazem um enorme esforço para privatizar o serviço e abocanhar verbas públicas; os professores, além de miseravelmente remunerados, vivem um processo de caça às bruxas, nos principais estados do país, com corregedorias espúrias avançando sobre a liberdade de cátedra (justamente quem vive bradando por liberdade de expressão); políticos fascistas invadem escolas e universidades para perseguir e afrontar alunos e mestres. Compondo o retrato de uma sociedade adoecida e perversa, que ataca com virulência as instituições mais importantes e generosas para seu povo. Esse tal homeschooling, não passa de mais uma tentativa de desacelerar o progresso social, garantindo a famílias embotadas pelo negacionismo científico, o direito de ensinar a seus filhos que a terra é plana, que as vacinas são perigosas, e coisas dessa natureza.
*Eduardo Papa - Colunista, professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)




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