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LIBERDADE DE EXPRESSÃO

  • Foto do escritor: Eduardo Papa*
    Eduardo Papa*
  • há 57 minutos
  • 6 min de leitura
 Ilustração de Felipe Mendes - @ocoletordehistorias
 Ilustração de Felipe Mendes - @ocoletordehistorias

*Eduardo Papa


A atual conjuntura brasileira abriu no país um debate que se mostra no mínimo curioso. Pessoas que defendem o regime militar de 1964 e cultuam a memória de torturadores, exigindo a liberdade de expressão em sua forma mais radical. Ao tempo em que pessoas do espectro político de esquerda, teoricamente libertárias, assumem cada vez mais uma posição punitivista, exigindo penas pesadas e rejeitando veementemente a anistia aos implicados no golpe militar fracassado da camarilha de Bolsonaro. Trata-se de um debate tão profundo, que gerou um evento que precipitou minha decisão de abandonar as redes sociais.

 

Quando, o então deputado Daniel Silveira usou sua liberdade de expressão para dizer que queria dar uma surra com o corpo de um gato morto no Ministro Alexandre de Moraes (que tipo de mente pode produzir uma imagem dessa natureza?), acabou na tranca dura da Polícia Federal. No dia 18 de fevereiro de 2021, um grupo de fervorosos apoiadores do bolsonarismo e do deputado, reuniu-se na porta da PF, onde o deputado estava detido, exigindo sua libertação, quando aparece o Edson Rosa. Uma figura conhecida nas manifestações públicas aqui no Rio de Janeiro, um homem simples, sempre vestido com a camisa da seleção (bem antes do modelito ser adotado pelos fascistas) e carregando cartazes rústicos de papelão, através dos quais exerce sua liberdade de expressão. Nesse dia, além do cartaz com sua mensagem, Edson trazia uma placa da Marielle Franco, coitado foi espancado impiedosamente e teve seus adereços arrancados pelos defensores da liberdade do deputado, escapando de destino pior pela providencial ação dos agentes federais. Ao observar uma postagem sobre o fato em um grupo de moradores do meu bairro, me deparei com um absurdo total. A tônica da discussão das pessoas era a de responsabilizar a vítima, considerando uma imprudência, coisa de um “sem noção”, aparecer no meio dos brucutus com uma mensagem diferente. Quando comecei a demonstrar a incoerência e a perguntar se o agredido não tinha também o direito de exercer sua liberdade de expressão acabou o papo, todo mundo sumiu, inclusive eu, que desse dia para cá nunca mais entrei no Facebook.


Edson Rosa agredido por bolsonaristas que se dizem defensores da liberdade de expressão.                 Imagens da Internet
Edson Rosa agredido por bolsonaristas que se dizem defensores da liberdade de expressão. Imagens da Internet

O caso é emblemático e ilustra bem a situação que vivemos, e expressa um grande dilema para a humanidade, que cresceu entre nós, a partir do século XVIII, quando o iluminismo começou a dar a palavra liberdade o conteúdo que temos hoje na cabeça. Morro de rir quando observo no cinema personagens da antiguidade com um discurso moderninho em defesa da liberdade, algo totalmente ridículo. Se estudassem como era a democracia ateniense, por exemplo, encontrariam uma aristocracia escravista e militarista, onde os candidatos derrotados nas eleições eram expulsos para a ilha de Ostras, quando não trucidados após apuração dos votos. Vivemos milhares de anos de opressão e violência. Trocamos o medo da natureza pelo medo de outros homens, adoramos deuses terríveis e vingadores. Em tempos de trevas, a liberdade poderia ser a legitimidade de oprimir outrem.

 

Quando a “luz” trazida pelos filósofos franceses, permitiu o questionamento do poder divino e acendeu a utopia da igualdade entre os homens, a palavra liberdade começou a ganhar o sentido que identificamos hoje. A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada em 26 de agosto de 1789, pela Assembléia Nacional Constituinte Francesa, foi um marco de progresso civilizacional para a humanidade, muito embora a guilhotina tenha sido o engenho que ficou associado aos seus líderes na memória histórica. A liberdade emergiu de um mar de sangue, em que nadou de braçada até a Revolução Russa em 1917, esta inaugurou mais  três décadas de matança, até entregar a atualização do conceito de liberdade em 1948, quando a Declaração dos Direitos Humanos da ONU incorporou as mulheres, os trabalhadores e os povos das áreas coloniais à parte da humanidade com direitos.

 

Hoje em dia, a definição de liberdade varia de acordo com o freguês, como tudo na sociedade pós-moderna. Quem acompanhou os noticiários sobre a parada militar em que a China apresentou ao mundo seu novo arsenal, talvez tenha notado o enfoque dado pela mídia ao encontro dos líderes da China, Rússia, Irã e Coréia do Norte, apresentado como um alarmante encontro do eixo de ditadores, de Estados autoritários, que ameaçam o mundo livre. Certamente, um número muito menor de pessoas teve acesso à notícia da prisão truculenta de uma turista chilena, em Nova Iorque, pelo ICE. As imagens correram o mundo da mulher gritando em total desespero, enquanto era arrastada pelos agentes, por ter deixado no meio da rua, sozinha e sem nenhum apoio, sua filha de 12 anos. Isso, tudo bem, no coração do tal mundo livre! Ainda que tenhamos estruturado sociedades complexas e desenvolvido múltiplas interpretações sobre o conceito de liberdade, para milhões de pessoas, ela continua sendo um prato de comida, e para a esmagadora maioria dos habitantes do planeta, uma discussão para quem está com a vida resolvida, sem muito sentido prático. O que a torna um conceito passível de manipulação por políticos populistas, capazes de chegar ao ápice da picaretagem, como os que hoje apresentam a PEC da impunidade, que praticamente garante aos deputados uma espécie de “licença para o crime”.

 

Ora, se a liberdade não é algo que possa se definir precisamente, se é um bem intangível, que pode ser inclusive utilizado de forma a justificar o autoritarismo, sua própria antítese. Se grupos, dentro de uma mesma sociedade, desenvolvem concepções particulares e mesmo antagônicas do que seria a liberdade, quais seriam os critérios para estabelecer os limites e a natureza da liberdade de expressão? Ela deve ser absoluta, de forma a liberar o nosso eu interior, ou ela deve ser limitada pelo senso de pertencimento a uma comunidade? Questão tão difícil quanto crucial para compreender nossa convivência social. Pensadores de diversas áreas e orientações ideológicas dedicam-se ao tema, cuja importância é tamanha que só se responde de fato na prática. Por exemplo, um indivíduo franzino pode sentir-se impelido a dirigir impropérios a outro mais corpulento e autocensurar-se vislumbrando a possibilidade de apanhar. Da mesma forma que um brutamontes pode sentir-se encorajado a fazer grosserias, valendo-se da imposição física. Vivemos continuadamente derrubando e estabelecendo limites em nossos relacionamentos em todos os níveis, pessoais, profissionais, políticos, etc.

 

Quem sabe a pista para desvendar o dilema, não esteja disponível há milênios, nas dicas do pensador estóico Epicteto, que apesar de ter vivido como escravo toda a sua vida, ganhou o epíteto de filósofo da liberdade, que sustentava que a verdadeira liberdade não é a ausência de restrições externas, mas o autocontrole sobre a nossa própria mente, alcançado pela aceitação e pelo uso da razão:

 

“lembra-te, então, se consideras livre o que é por natureza servil e julga teu o que não é, estarás acorrentado e infeliz. Mas se considera teu somente o que te pertence e aquilo que é dos outros uma posse que não é de fato tua, então ninguém jamais será capaz de coagir-te ou deter-te, não encontrarás ninguém para culpar-te ou acusar-te, não farás nada contra tua vontade, não terás nenhum inimigo, ninguém te fará mal, porque nenhum mal pode afetar-te”. 

 

Uma filosofia prática, que chegou até nós na simplicidade do censo comum, trazida pelas palavras sábias de nossos pais e avós, que nos ensinavam que o nosso direito termina quando começa o do outro. Simples assim. Por isso a liberdade é sempre conquistada e jamais outorgada, por nascer dentro de nós e se materializar no relacionamento com o outro. Um opressor jamais conhecerá a liberdade, pois ainda que consiga dominar um grande número de pessoas, sempre será escravo de sua necessidade de imposição, incapaz de alcançar um estado de ataraxia, a capacidade de enfrentar de forma serena quaisquer situações. A liberdade é uma construção de relações entre seres humanos baseadas no respeito mútuo e na igualdade, e não há respeito relativo ou desigualdade em nível tolerável. Não há liberdade onde há preconceito, não há liberdade onde há exploração econômica, não há liberdade onde “consensos” são gerados por coerção de qualquer natureza.

 

A liberdade jamais conduzirá ao retrocesso civilizacional, a selvageria que a ascensão do fascismo apresenta como libertária aos incautos é voltar milênios no tempo. Permitir a um troglodita, vestindo uma camisa amarela, impor aos berros, empurrões e pancadaria sua vontade não é exercício de liberdade, mas justo o contrário, é a sua negação. Em sociedades complexas como a humanidade construiu em milênios de civilização regras de convivência comum, que estabelecidas tem que ser respeitadas. Até mesmo o idiota do Bolsonaro reconhecia, usando sua linguagem medíocre e vocabulário limitado, que deveriam ser respeitadas quatro linhas da constituição para o jogo político. O problema é que a turma dele resolveu infringir as regras. Pode isso Arnaldo?

 

*Eduardo Papa - Colunista, professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)

 
 
 
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