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Remissão inédita do HIV reacende debates éticos, jurídicos e de equidade LGBTQIAPN+ no Brasil

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    Ronaldo Piber
  • há 19 horas
  • 6 min de leitura
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*Ronaldo Piber


A revelação de que um homem vive há mais de seis anos sem sinais detectáveis do HIV após um transplante de células-tronco, segundo estudo aceito pela revista Nature, ganhou grande repercussão mundial e rapidamente se espalhou pelas redes sociais, instituições científicas e setores da saúde pública. A conquista desperta esperança e fornece material valioso para pesquisas que buscam, no futuro, tratamentos curativos.


No entanto, o impacto dessa notícia no Brasil ultrapassa o campo da medicina: ela toca diretamente o debate sobre equidade, direitos humanos, proteção social e responsabilidade sanitária em relação à população LGBTQIAPN+, historicamente mais afetada pela epidemia de HIV e mais exposta a barreiras estruturais no acesso ao cuidado.


A remissão é extraordinária, mas seu caráter excepcional exige atenção redobrada. Em um país onde pessoas LGBTQIAPN+ ainda enfrentam estigma institucional, discriminação nos serviços de saúde, violência social e desinformação, compreender o que essa descoberta significa — e, sobretudo, o que ela não significa — é fundamental para orientar políticas públicas eficazes, baseadas na ciência e comprometidas com a redução das desigualdades.


A ciência avança — mas a cura permanece uma raridade extrema

O caso descrito pela Nature envolve um transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH), terapia utilizada para tratar doenças graves, como leucemias e linfomas. No Brasil, sua indicação e execução são rigidamente regulamentadas pela Portaria SAS/MS nº 1.400/2017, pela Anvisa e pelas diretrizes da Sociedade Brasileira de Transplante de Medula Óssea (SBTMO). Trata-se de um procedimento de alto risco, cujas taxas de mortalidade podem ser significativas e, por isso, é reservado a situações clínicas extremas.


O paciente relatado recebeu células-tronco de um doador com a mutação CCR5-Δ32, que impede a entrada do HIV nas células de defesa. Após o transplante e a interrupção rigorosamente supervisionada da terapia antirretroviral (TARV), exames altamente sensíveis deixaram de identificar qualquer traço do vírus por mais de seis anos.


Esse resultado é impactante, mas não pode ser interpretado como uma cura replicável ou acessível. Ele segue sendo um fenômeno raro, de alto risco e dependente de circunstâncias clínicas específicas — totalmente incompatível com o uso em pessoas vivendo com HIV que estejam clinicamente estáveis, sobretudo no Brasil, onde homens gays, pessoas trans, travestis, jovens LGBTQIAPN+ e pessoas negras continuam desproporcionalmente afetados pela epidemia.


A epidemia do HIV no Brasil ainda tem cor, classe e orientação

A epidemia do HIV no Brasil nunca foi homogênea. Desde os anos 1980, ela atingiu grupos específicos com mais intensidade, especialmente homens gays e bissexuais, pessoas trans e travestis — muitos deles vivendo nas margens sociais, expostos à violência, à exclusão familiar e à falta de acesso a serviços de saúde acolhedores.


Mesmo com avanços como a expansão da TARV, da PrEP e da PEP pelo SUS, persistem desigualdades profundas. O HIV afeta de forma desproporcional:

  • homens gays e bissexuais, que seguem com taxas elevadas de novas infecções;

  • pessoas trans e travestis, frequentemente vítimas de exclusão, violência e precariedade extrema;

  • jovens LGBTQIAPN+, muitos dos quais abandonam serviços de saúde devido ao estigma;

  • pessoas negras, mais sujeitas ao racismo estrutural;

  • populações periféricas, que sofrem com acesso limitado a políticas de prevenção;

  • profissionais do sexo, que enfrentam vulnerabilidade social agravada.


Essas desigualdades ferem princípios constitucionais básicos, como o direito universal à saúde, previsto no art. 196 da Constituição Federal, e os fundamentos de universalidade e equidade estabelecidos na Lei nº 8.080/1990, que organiza o SUS. Assim, qualquer notícia sobre “cura” deve ser interpretada à luz desse cenário: uma descoberta científica não pode apagar o fato de que a epidemia segue marcada por determinantes sociais que afetam, sobretudo, a comunidade LGBTQIAPN+.


Não maleficência: a ética que impede terapias arriscadas sem indicação

Para uma população que já foi vítima de práticas violentas, patologizantes e antiéticas — incluindo as falsas “curas gays” que marcaram capítulos vergonhosos da história da medicina —, a discussão sobre tratamentos arriscados deve ser conduzida com extrema responsabilidade. O transplante de células-tronco, embora tenha produzido remissão do HIV neste caso específico, é um procedimento arriscado e potencialmente fatal.


Na bioética, o princípio da não maleficência determina que nenhum paciente deve ser submetido a dano previsível sem benefício clínico justificável. Isso é reforçado pelo Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018), que proíbe condutas que coloquem pacientes em risco desnecessário, especialmente quando há alternativas terapêuticas seguras e eficazes — como a TARV, que transforma o HIV em uma condição crônica controlável.


Assim, pessoas LGBTQIAPN+ — que historicamente já sofreram com práticas médicas abusivas — precisam ser particularmente protegidas contra falsas promessas de cura, terapias experimentais de risco e abordagens clínicas sem respaldo científico.


Autonomia e proteção: limites legais contra decisões de alto risco

No Brasil, a autonomia do paciente é reconhecida por leis como a Lei nº 10.241/2001 (Lei Covas) e pelas normas do CFM sobre consentimento informado. No entanto, a autonomia não é absoluta: o paciente não pode exigir procedimentos proibidos, antiéticos ou que geram risco desproporcional.


Mesmo que uma pessoa LGBTQIAPN+ — pressionada por estigma, discriminação ou sofrimento emocional — desejasse se submeter a um transplante arriscado na esperança de “cura”, o médico estaria legalmente impedido de realizar o procedimento. Esse limite protege vidas e impede que vulnerabilidades sociais sejam exploradas por práticas médicas inadequadas.


A lei brasileira restringe intervenções experimentais e protege vulneráveis

O Brasil possui legislação robusta para pesquisas envolvendo seres humanos, incluindo:

  • Lei nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança),

  • Resolução CNS nº 674/2022,

  • Resolução CFM nº 2.294/2021 (transplantes),

  • Portaria nº 2.324/2023 (terapias avançadas),

  • Regras da CONEP sobre ética em pesquisa.


Essas normas estabelecem que intervenções experimentais só podem ocorrer quando:

  • não há alternativa terapêutica eficaz,

  • existe justificativa científica sólida,

  • o risco é proporcional ao benefício esperado.


Como a TARV é eficaz, segura e amplamente disponível no SUS, qualquer tentativa de realizar transplantes arriscados apenas para fins de “cura viral” seria ilegal, antiética e contrária às normas de proteção dos participantes — especialmente considerando a vulnerabilidade social da população LGBTQIAPN+.


Jurisprudência: o Estado não deve custear tratamentos experimentais

O Judiciário brasileiro reforça essa proteção por meio de entendimentos vinculantes:

  • STF – Tema 500: o Estado não está obrigado a fornecer tratamentos experimentais.

  • STJ – Tema 106: só podem ser judicialmente exigidos tratamentos registrados na Anvisa.

  • TRF-4 – Súmula: não existe direito subjetivo a tratamento experimental.


Ou seja, pedidos judiciais para transplantes visando “curar” o HIV seriam indeferidos — o que, neste contexto, representa proteção sanitária e não omissão estatal.


O sistema de saúde brasileiro se fundamenta no princípio da equidade: tratar desigualmente os desiguais para reduzir desigualdades. O transplante de medula é um procedimento de alta complexidade, com recursos limitados e destinado a tratar patologias potencialmente fatais.


Desviar essa estrutura para intervenções experimentais representaria:

  • violação da política pública,

  • injustiça distributiva,

  • e prejuízo direto a pacientes que dependem do transplante para sobreviver — incluindo pessoas LGBTQIAPN+ que sofrem com doenças hematológicas e lutam para ter acesso a cuidados especializados sem discriminação.


A verdadeira equidade exige direcionar recursos para prevenção, cuidado continuado, acolhimento e combate ao estigma — não para terapias arriscadas e ainda sem aplicabilidade generalizada.


Genética e terapia gênica: novos horizontes, novos dilemas

A remissão reacende debates sobre terapias gênicas — como a edição do gene CCR5 via CRISPR — que talvez possam, no futuro, replicar o efeito curativo sem os riscos do transplante. Mas essas tecnologias trazem dilemas éticos, especialmente para populações historicamente submetidas à patologização.


A Lei de Biossegurança autoriza manipulação de células somáticas, mas proíbe alterações hereditárias — limite essencial para evitar abusos e desigualdades biológicas. O avanço dessa área precisará de vigilância ética rigorosa, com participação ativa de movimentos LGBTQIAPN+ que defendem o direito à autonomia, ao corpo e à diversidade.


Informação ética: proteger contra desinformação e falsas promessas

A desinformação é um dos principais inimigos na luta contra o HIV. No caso da população LGBTQIAPN+, a circulação de informações distorcidas tem efeitos ainda mais graves, pois reforça estigmas, promove abandono da TARV e alimenta expectativas irreais.


No Brasil, legislações como a Lei nº 6.437/1977 (infrações sanitárias) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) punem a oferta de tratamentos sem comprovação científica e publicidade enganosa — proteção fundamental em tempos de redes sociais e discursos pseudocientíficos.


Esperança real — responsabilidade ainda maior

A remissão inédita apresentada pela Nature é motivo de celebração científica, mas não pode obscurecer as prioridades sanitárias do Brasil, especialmente no cuidado à população LGBTQIAPN+. O foco precisa permanecer no que salva vidas hoje:


  • ampliação da PrEP e PEP em todas as regiões,

  • fortalecimento da testagem e do diagnóstico precoce,

  • combate ao estigma e à discriminação nos serviços de saúde,

  • formação de profissionais com perspectiva LGBTQIAPN+,

  • políticas públicas específicas para pessoas trans e travestis,

  • acolhimento digno, humanizado e livre de preconceitos,

  • acesso universal e contínuo à TARV.


A cura do HIV poderá, um dia, ser uma realidade. E quando esse dia chegar, ela só terá sentido se alcançar todos — independentemente de orientação sexual, identidade de gênero, classe social ou cor.


Até lá, o compromisso ético, jurídico e sanitário do Brasil é claro: proteger vidas, combater desigualdades e garantir que a ciência sirva como instrumento de justiça, e não de exclusão.



*Ronaldo Piber é advogado e colunista do Pimenta Rosa





 
 
 

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