Cuidado afirmativo e letramento em saúde: o caminho para uma atenção realmente inclusiva
- Ronaldo Piber

- há 3 dias
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Ronaldo Piber*
A saúde é um direito universal, mas nem todos se sentem igualmente convidados a exercê-lo. Para muitas pessoas LGBTQIA+, a ida a um serviço de saúde ainda é uma experiência marcada por insegurança, constrangimento e medo de julgamento. Essa realidade foi mais uma vez evidenciada em um estudo norte-americano publicado em maio na revista Health Services Research, que analisou a relação entre a qualidade do atendimento médico e a adesão a medidas preventivas — como exames e vacinas — entre quase mil adultos LGBTQIA+ de 50 a 76 anos.
Os resultados são claros e alarmantes. Pessoas que vivenciaram atendimento discriminatório apresentaram menor adesão à vacinação contra gripe (12% a menos) e menos rastreamento para câncer colorretal (15% a menos). Já aquelas que relataram experiências “neutras” — sem sinais explícitos de acolhimento, mas também sem ofensas diretas — tiveram 12% menos chance de ter realizado teste de HIV e 17% menos chance de testagem recente.
Esses dados mostram que a simples neutralidade não é suficiente. A ausência de acolhimento também afasta, também fere, também mata — ainda que de forma silenciosa. Não basta um profissional “não discriminar”; é necessário afirmar o respeito, reconhecer as identidades e criar um ambiente onde a diversidade seja parte natural do cuidado.
O que é o cuidado afirmativo
O conceito de cuidado afirmativo propõe uma prática ativa de inclusão. Ele envolve reconhecer as múltiplas expressões de gênero e orientações sexuais, respeitar o nome social e os pronomes de cada pessoa, utilizar linguagem inclusiva, capacitar continuamente as equipes e tornar visível o compromisso institucional com os direitos da comunidade LGBTQIA+.
Como destaca o ginecologista Emmanuel Nasser Vargas Assis, do Hospital Municipal M’Boi Mirim, em São Paulo, “a falta de acolhimento por si só gera um impacto enorme”. Apenas 3% dos consultórios avaliados na pesquisa apresentavam materiais visuais de apoio à comunidade LGBTQIA+, e apenas 17% dos pacientes relataram ter sido atendidos com linguagem inclusiva. Pequenos gestos, como não presumir o gênero ou a orientação de um paciente, usar corretamente o nome social, ou evitar expressões normativas (“marido”, “esposa”) são determinantes para construir um ambiente seguro.
No Brasil, apesar dos avanços legais e de políticas públicas como a Política Nacional de Saúde Integral LGBT, o cenário ainda é desafiador. Persistem barreiras estruturais, desconhecimento e preconceitos sutis que afastam pessoas LGBTQIA+ dos serviços de saúde — muitas vezes, por traumas acumulados ao longo da vida.
O papel do letramento em saúde
Esse debate se conecta profundamente ao conceito de letramento em saúde, definido como a capacidade de acessar, compreender, avaliar e aplicar informações de saúde para tomar decisões informadas sobre o próprio cuidado. Mais do que saber ler um folheto ou interpretar uma receita, trata-se de entender o contexto cultural, social e emocional em que a informação é recebida e aplicada.
No caso das pessoas LGBTQIA+, o letramento em saúde precisa considerar as especificidades das suas trajetórias: as violências históricas, o medo da rejeição, a desconfiança no sistema e a falta de representatividade. Uma comunicação efetiva só é possível quando há empatia, escuta e respeito à identidade do outro.
Nesse sentido, o trabalho da Rede Brasileira de Letramento em Saúde (Rebrals) tem sido fundamental. A Rebrals articula profissionais, pesquisadores e instituições de todo o país em torno da missão de tornar a informação em saúde mais acessível, compreensível e inclusiva. Isso significa, por exemplo, adaptar materiais de orientação, simplificar a linguagem médica, capacitar equipes e promover o diálogo entre profissionais e comunidades vulneráveis.
Quando um serviço de saúde adota práticas de letramento — explicando termos, acolhendo dúvidas e validando as vivências dos pacientes — ele não apenas melhora a comunicação, mas também fortalece a autonomia e o autocuidado. Em contrapartida, a falta de letramento reforça desigualdades, especialmente entre populações já marginalizadas.
O desafio das gerações mais velhas
O estudo da Health Services Research concentrou-se em pessoas LGBTQIA+ com mais de 50 anos, um grupo que enfrenta duplos estigmas: o etário e o identitário. Muitos viveram períodos de intensa discriminação, como a epidemia de HIV/AIDS nas décadas de 1980 e 1990, e cresceram em um contexto em que ser LGBTQIA+ significava ser invisível ou criminalizado.
Essas experiências deixaram marcas profundas na saúde mental e na confiança em instituições médicas. O resultado é que muitos desses indivíduos chegam aos serviços em estágios mais avançados de doença, com menos apoio familiar e social. O acolhimento intergeracional — que reconhece essas histórias e respeita suas vulnerabilidades — é parte essencial de um cuidado humanizado.
Do discurso à prática
Implementar uma saúde inclusiva requer mais do que boa vontade: exige políticas institucionais concretas, educação permanente e diversidade nas equipes. Banheiros neutros, formulários que incluam nome social e identidade de gênero, campanhas visuais de apoio, uso de linguagem inclusiva e protocolos de conduta são ferramentas simples, mas poderosas.
É também uma questão de representatividade. Quando pessoas LGBTQIA+ ocupam espaços na gestão, na assistência e na docência, toda a estrutura de saúde se torna mais sensível e diversa. O corpo que cuida deve refletir o corpo que é cuidado.
Conclusão: acolher é salvar vidas
O letramento em saúde e o cuidado afirmativo não são conceitos teóricos: são estratégias concretas de redução de desigualdades e promoção da equidade. Um ambiente que acolhe de forma ativa comunica, ainda que silenciosamente, que todas as vidas importam — inclusive as que historicamente foram marginalizadas.
No fim das contas, cuidar bem é também educar para o cuidado. É falar com respeito, ouvir sem julgamentos e agir com empatia. É entender que saúde e dignidade caminham juntas.
Em um país onde o acesso à saúde ainda é desigual, acolher é um ato de resistência e amor — e também, profundamente, de justiça social.
*Ronaldo Piber é advogado e colunista do Pimenta Rosa




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