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O PLANALTO ENTRE A MONTANHA E A PLANÍCIE

  • Eduardo Papa
  • há 1 hora
  • 11 min de leitura
Ilustração de Felipe Mendes - @ocoletordehistorias
Ilustração de Felipe Mendes - @ocoletordehistorias

Por Eduardo Papa*


Hoje vou escrever sobre uma paixão da minha vida, a qual não apenas dediquei-me a estudar, mas também vivi intensamente – a política. Minha formação acadêmica foi em História (UFF), que nada mais é que a política em tempo passado. Participei ativamente na vida política do nosso país desde a luta contra a ditadura militar, quando tive a honra de pertencer à mesma organização política que a grande Dilma Roussef. Após a redemocratização fui presidente de diretório do PDT em vários mandatos e ocupei cargos políticos nos governos de Saturnino Braga, Marcello Alencar e Leonel Brizola. Atuei na luta sindical militando no SEPE e participei de diversos movimentos sociais em defesa de nossa cidade e da cidadania brasileira. Apresento credenciais não por bazófia, mas porque tenho visto tanta gente desqualificada escrever sobre o assunto, que senti necessidade de garantir ao leitor que o faço com conhecimento de causa.

 

Ampliado pelas redes sociais, o debate político desceu a níveis cada vez mais rasos no Brasil. A fraca formação acadêmica nas ciências humanas em nossas escolas, aliada a uma massiva distribuição de desinformação, criaram o clima para tentativas maliciosas de falsificação da memória histórica e, a partir daí, prosperou todo tipo de mistificação, em uma verdadeira mixórdia intelectual. Há gente afirmando que o nazismo é de esquerda, há quem misture capitalismo com anarquismo, quem confunda fascismo com antissemitismo. Uma densa névoa paira sobre o assunto obscurecendo a visão das pessoas. Como a amplitude e complexidade do tema exigem que seja tratado em recortes, escolhi focar em uma discussão muito presente na sociedade brasileira: a distinção e classificação do pensamento humano entre esquerda e direita e como essas vertentes gerais do pensamento se desenvolveram no mundo e no Brasil.

 

A ORIGEM. Foi na Revolução Francesa, quando se reuniu a Assembleia Nacional, que surgiu essa denominação. Os representantes eleitos se aglutinaram em dois grupos no plenário: os deputados do Partido da Montanha, que geralmente defendiam medidas em defesa da pequena burguesia e da massa trabalhadora, sentavam-se à esquerda da mesa diretora, e os deputados do Partido da Planície, ocupando o lado direito, defendiam leis em benefício do grande capital. Assim surgiu a divisão ideológica que marcou o desenvolvimento da humanidade a partir de então.

 

Após o vendaval das Guerras Napoleônicas e das revoluções liberais e nacionalistas na Europa, o pensamento de direita dividiu-se em duas vertentes: a Santa Aliança, reunindo as forças conservadoras da Igreja e das grandes monarquias imperiais e a direita liberal, nos partidos de orientação democrática da Europa Ocidental. Enquanto a esquerda viveu um período de predominância dos anarquistas, até que os partidos da social democracia assumiram a hegemonia no movimento e fundaram a I Internacional Socialista, liderando a luta por leis e reformas sociais dentro do jogo parlamentar.

 

A guerra de 1914-1918 dividiu a esquerda, enquanto os partidos social democratas apoiaram seus Estados Nacionais, surgiu uma corrente que se recusava a apoiar o esforço de guerra: os partidos comunistas, que organizaram a II Internacional, com uma perspectiva mais radical e revolucionária do movimento de esquerda, logrando sucesso em 1917, quando a revolução dos Bolcheviques na Rússia mudou o mundo completamente.

 

NO BRASIL. Em nosso país, até o final do séc. XIX, a diferença entre direita e esquerda era a da mão com que o feitor empunhava o chicote, mesmo no século vinte, até 1930, a oligarquia rural dominou a cena política. Uma direita reacionária, com forte apoio da Igreja, que incorporou o pensamento positivista trazido pelos militares para justificar o autoritarismo do Estado em seu favor. A esquerda chega ao Brasil com os trabalhadores imigrantes e sua primeira expressão foi o anarquismo, que protagonizou grandes greves, mesmo enfrentando brutal repressão, com prisões em massa e deportações sumárias (Lei Adolfo Gordo), os anarquistas foram muito atuantes no início do século XX. O Partido Comunista foi fundado em 1922, mas nunca chegou a ter grande expressão política, os movimentos sociais mais significativos na República Velha não tiveram qualquer influência de esquerda: Canudos e o Contestado tiveram liderança religiosa e messiânica, a Revolta da Chibata foi um motim militar e a da Vacina uma reação espontânea ao autoritarismo de Oswaldo Cruz.

 

COMUNISMO X NAZISMO. No fim da guerra, o continente europeu arrasado pela guerra mergulhou no caos, com problemas sociais gravíssimos, para os quais o modelo liberal tradicional não tinha respostas. O grande capital, apavorado, sustentou o surgimento do nazi-fascismo, para conter o crescimento da esquerda revolucionária. Após a vitória do nazismo na Alemanha, a URSS adota uma política de resgate do nacionalismo russo, como forma de se preparar para enfrentar a guerra que se avizinhava. A burocracia do Partido Comunista cristalizou-se no aparelho de Estado, subsumiu o poder dos sovietes e as iniciativas de autogestão econômica foram progressivamente abandonadas. Joseph Stálin, para organizar a luta antifascista, criou a III Internacional (Comintern), que determinou a subordinação dos partidos comunistas do mundo inteiro à direção de Moscou, ocasionando uma nova cisão na esquerda mundial. León Trotsky liderou a formação de uma IV Internacional, com segmentos que não aceitaram essa submissão e defendiam uma postura radical de não conciliação com os partidos liberais e da social democracia.

 

A GUERRA FRIA. A II Guerra Mundial terminou com a vitória esmagadora da URSS e a destruição do nazismo. O Comintern cresceu surfando na onda da vitória do Exército Vermelho, que colocou os PCs da Europa Oriental no poder e apoiava o vitorioso avanço de Mao Tsé Tung na China, bem como diversos movimentos de emancipação no terceiro mundo. A direção da União Soviética na esquerda mundial foi consolidada e os PCs do mundo inteiro seguiam sua orientação e eram por ela apoiados e tutelados. No campo da direita, a eliminação da concorrência do fascismo não favoreceu tanto assim os partidos liberais, Churchill perdeu as eleições para os Trabalhistas logo depois da guerra, os Partidos Comunistas na Itália e na França se tornam forças capazes de disputar o poder pelas eleições, e guerras coloniais colocaram forças apoiadas pela URSS no poder em vários países.

 

O mundo da guerra fria foi moldado sob a hegemonia estadunidense, que impôs o dólar como moeda nas trocas internacionais e um sistema de governança financeira baseado no Banco Mundial e no FMI. Entretanto, as forças conservadoras foram obrigadas a aceitar a implantação de um sistema de proteção social e a elevação geral dos salários, para barrar o avanço dos partidos comunistas. Porém, combinando essa ação com um combate à esquerda em várias frentes: no plano ideológico com a sofisticação da propaganda anticomunista na mídia, além da boa e velha religião e a influência sobre a educação; por meio da perseguição social e econômica e policial a opositores, como a capitaneada pelo Senador Eugene McCarthy nos EUA; através de bloqueios econômicos a países “rebeldes” como Cuba; além da força bruta e da guerra. O exército francês aplicou na Argélia as técnicas de tortura e contra insurgência que a sua polícia aprendeu com a Gestapo, enquanto ajudava os nazistas a caçar judeus e partisans (técnicas compartilhadas com a CIA, que as forneceu a ditadores aliados no mundo inteiro). 

 

DE GETÚLIO A CASTELO. No Brasil moderno, forjado na Era Vargas, foi o nacional desenvolvimentismo que acabou ocupando o espaço da esquerda no espectro político. Vargas propiciou a migração de parte do capital brasileiro da agricultura para a indústria e orquestrou uma aliança política entre setores de trabalhadores urbanos e empresários da indústria, ambos beneficiados pela urbanização e a infraestrutura industrial criada pelo Estado. O caudilho deixou como legado político o Partido Trabalhista Brasileiro, que, com um projeto de grande aceitação entre os segmentos progressistas da população, acabou por liderar a esquerda brasileira, contando com frequente apoio dos comunistas. A direita dividiu-se em duas vertentes: o latifúndio exportador organizou-se no PSD e surgiu a União Democrática Nacional para disputar o voto urbano, apoiada e financiada pelo imperialismo ianque. A UDN foi um fracasso eleitoral e só chegou ao poder em um golpe militar patrocinado e organizado pela CIA.

 

Após 1964, a direita brasileira aderiu alegremente ao fascismo, o pouco que restou da direita liberal reuniu-se no MDB e esperou duas décadas em estado latente, para reaparecer na constituinte de 1988. A esquerda foi desbaratada em uma escalada de prisões, assassinatos e banimentos. No final dos anos 60, Carlos Mariguela promove uma cisão dentro do PCB, que toma em armas para combater o regime militar e começa a guerra suja. Grande parte dos jovens que se rebelou em 1968 aderiu à guerrilha, sendo em grande parte eliminados pela repressão.

 

O NEOLIBERALISMO. Na década de 70, a dupla Reagan/Thatcher atuou agressivamente para ampliar o controle do grande capital sobre o mundo, avançando fortemente contra a regulamentação das atividades econômicas e na destruição do estado de proteção social. A esquerda vivia um processo de fragmentação, com o questionamento da liderança dos burocratizados partidos tradicionais ligados a URSS, resultando no surgimento de organizações que defendiam a ação armada direta e uma forte corrente focada nas chamadas pautas identitárias (movimento negro, feminismo, etc.). A diplomacia de Henry Kissinger conseguiu separar a China da Rússia e, no início da década de 90, o regime soviético caiu, junto com o Muro de Berlim e as repúblicas socialistas da Europa Oriental. No ano 2000, Freedman, um importante jornalista ocidental, publicou uma matéria no New York Times anunciando o fim da história, da luta de classes e o surgimento de um novo mundo, em que o capital não conheceria limites.

 

A NOVA REPÚBLICA. A ditadura brasileira não foi de fato derrubada, mas sim caiu de podre, o que influenciou de forma determinante no ritmo do processo de redemocratização e na construção do novo ordenamento político e partidário. A esquerda brasileira saiu da ditadura esfacelada, pouco restou além de alguns grupos organizados que sobreviveram na resistência, aqueles que optaram por formar partidos próprios (PCB, PCdoB, PSTU) nunca chegaram a ter grande expressão. Leonel Brizola, que retornou do exílio para retomar o projeto do PTB de Getúlio e Jango, tomou uma rasteira dos militares, que lhe tomaram a sigla. Criou o PDT e conseguiu resultados expressivos no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, mas foi isolado e sucumbiu ante uma campanha avassaladora de difamação da mídia. Quem acabou ocupando a posição de força dominante no campo da esquerda foi o Partido dos Trabalhadores, que tendo o novo sindicalismo do ABC paulista por base, aproveitando a capilaridade trazida pelo apoio nas Comunidades Eclesiais de Base e, com a carismática liderança de Lula, chegou à hegemonia em seu campo.

 

A direita saiu da ditadura incólume. Uma anistia concebida pelos generais preservou os quadros de torturadores das polícias e das forças armadas, que se reagruparam em atividades privadas (milícias, grupos de extermínio, etc.), ganhando musculatura para disputar e chegar ao poder com Bolsonaro. A direita liberal tradicional perdeu sua grande oportunidade com a trágica morte de Tancredo Neves, no governo de José Sarney, os setores tradicionais do conservadorismo tiveram o tempo e o conforto necessário para se agrupar dentro do PDS e do PFL em bancadas temáticas. A bancada do latifúndio exportador, que, embora dividida entre um setor mais moderno e a velha turma dos coronéis, conseguiu manter sua coesão e garante os seus interesses sem problemas. Outra bancada temática que surgiu na direita brasileira foi a da bíblia, que reúne os representantes eleitos pela influência dos neopentecostais, tem crescido de maneira exponencial e possuem um projeto de poder teocrático que vem sendo executado metodicamente. Mas quem assumiu o comando mesmo foi a turma da Faria Lima. O capital financeiro ocupou a liderança da burguesia e emplacou uma vitória atrás da outra, com Collor e FHC duas vezes, conseguindo avanços importantes no projeto neoliberal de financeirização da economia, destruição do Estado e privatização de tudo na vida.

 

Ainda que o grande capital financeiro tenha conseguido produzir um consentimento quanto aos pressupostos do neoliberalismo (meritocracia, desregulamentação, privatizações, etc.), o empobrecimento imposto aos trabalhadores e ao povo em geral, levou o PT ao governo no final do período FHC. Lula e depois Dilma implantam um projeto bem sucedido de redistribuição de renda e combate à pobreza e, muito embora não tenham combatido a hegemonia do setor financeiro na economia, pareciam ter retomado a mania da esquerda dos anos 50 de não perder eleições presidenciais. Em 2008, a crise econômica nos EUA apavorou o sistema financeiro dos EUA e o império resolveu apertar o cinto das áreas periféricas. Obama acionou a 'clinton cash machine' e Biden foi encarregado de organizar o golpe para depor Dilma e abocanhar os recursos do pré-sal, que operado por Temer e Eduardo Cunha foi bem-sucedido. O Lawfare para afastar o PT do poder e garantir a eleição de Bolsonaro marcou o debut dos algoritmos das redes sociais na nossa vida política e a entrada dos bilionários com suas big techs no jogo mudou tudo.

 

O MUNDO MULTIPOLAR. Sob a liderança de Deng Xiaoping, o Partido Comunista Chinês desenvolveu um projeto de modernização e crescimento industrial, baseado em um socialismo de mercado, que produziu resultados espetaculares, tirando quase um bilhão de chineses da miséria e transformando o país em uma potência econômica e militar de primeira grandeza, capaz de rivalizar e ultrapassar os EUA. Na Rússia, após uma década de destruição econômica, elementos ligados ao sistema de segurança do antigo regime soviético, liderados por Vladmir Putin, assumem as rédeas do país e iniciam um processo de reconstrução econômica baseado em uma política nacionalista e desenvolvem uma parceria estratégica com a China. O mundo unipolar, sob a hegemonia estadunidense, durou pouco, exatos dezessete anos, da desagregação da URSS em 1991, até a crise econômica de 2008. O poder dos EUA passa a ser questionado em diversas esferas: seu poder militar já não é mais incontestável, a desigualdade leva seu povo a um elevado nível de pobreza, e o dólar começa a perder a exclusividade nas transações internacionais.  Vivemos a aurora de uma nova ordem multipolar, em que o mundo parece caminhar a passos largos para momentos decisivos.

 

A direita nos EUA e na Europa está profundamente dividida, enquanto uma parte defende o aprofundamento do processo de globalização, atualizando as formas de dominação neocolonial (Partido Democrata nos EUA e os partidos liberais e do centro na Europa), outro segmento abraça fortemente o nacionalismo, com um viés xenófobo, procurando resgatar o protagonismo econômico e controle político direto sobre suas áreas de influência (Trump e a extrema direita europeia). A esquerda vive uma crise de identidade. Não existe mais o chão da fábrica dos tempos de Marx e Lênin. Hoje os trabalhadores estão dispersos na cadeia produtiva, empresas de grande porte espalham pelo mundo suas plantas industriais e terceirizam parte da produção. No mundo dos entregadores e trabalhadores regulados por aplicativos, os sindicatos perdem força e as relações entre capital e trabalho regridem a uma selvageria hobbesiana, com uma exploração desenfreada.

 

No Brasil, a direita agora é o fascismo. Não tem mais espaço para os políticos tradicionais, que sabem usar os talheres e se comportam polidamente. O poderoso PSDB vai desaparecer em mais uma fusão partidária nessa sopa de letrinhas que virou nosso sistema partidário, uma babel com dezenas de partidos que obedecem a interesses fisiológicos paroquiais, que ganhou o carinhoso apelido de centrão. A única coisa que os unifica é a defesa do sistema financeiro. No mais, oferecem um espetáculo de mediocridade e grosserias, escancarando seus preconceitos e instilando o ódio entre seus seguidores.

 

No campo da esquerda há uma forte influência do grande capital através de Organizações Não Governamentais, muito bem fornidas de recursos, que atuam em causas ambientais, em defesa dos direitos humanos, pela transparência, pela educação, etc. São a longa manus de Lemmerman, Soros e bilionários do mundo inteiro no movimento social, que financiam 'think tanks' para afirmar o consenso neoliberal no campo progressista. Ao mesmo tempo, seguindo o arcabouço conceitual de Alexander Duguin (ideólogo de Putin), organiza-se uma corrente política nacionalista, que defende a soberania econômica do Brasil, mas flerta com ideias preconceituosas e autoritárias.

 

Todas essas nuances,no pensamento atual, podem tornar difícil de identificar o fundamento das propostas políticas que se descortinam à nossa frente. Eu recomendo a simplicidade, a chave para desvendar o mistério está disponível desde o século dezoito: há que se analisar se o discurso traz a herança do Partido da Planície e se alinha com os 'Faria Limers', ou se está em sintonia com o Partido da Montanha e prioriza os interesses do povo pobre. Não tem como errar.



*Eduardo Papa - Colunista, professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)

 

 
 
 

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